Divagações: Saul Fia
2.2.16
Talvez a melhor coisa em assistir um filme ‘estrangeiro’ ou, melhor dizendo, aqueles produzidos fora do seio do paradigma hollywoodiano, é se deparar com algumas formas bem diferentes de se fazer cinema – quer seja por diferenças culturais ou porque simplesmente os diretores têm maior espaço de experimentação. Claro que nem sempre essas diferenças se comunicam bem com o grande público (ou um tipo de linguagem cinematográfica absolutamente compreensível para seus nativos funciona bem no resto do mundo), porém, é fato que algumas das coisas mais interessantes e diferentes do cinema contemporâneo estão fora dos grandes circuitos.
Por isso, é sempre satisfatório quando um filme como Saul Fia, representante da Hungria e um dos favoritos do Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira, consegue chegar aos cinemas brasileiros, ainda que em poucas salas.
Passando-se durante o holocausto, a produção acompanha Saul Ausländer (Géza Röhrig) um judeu húngaro que faz parte do Sonderkommando, um grupo de prisioneiros que forçosamente trabalha nos crematórios de Auschwitz em troca das próprias vidas. Deparando-se com um menino que ele acredita ser seu filho (Gergö Farkas e Balázs Farkas), morto nos processos de extermínio, Saul se propõe a tarefa impossível de prover um enterro digno a criança, mesmo que tenha que arriscar a sua própria vida.
Com uma premissa simples e personagens pouco marcantes, esse não é exatamente um filme que deve ser apreciado pelo enredo, mas pelos temas e pela maneira que trabalha com questões e dualidades morais. De algum modo, Saul Fia soa muito mais próximo das tragédias gregas (a semelhança com Antígona, de Sófocles, é perceptível) que de um filme tradicional sobre o holocausto. Sabemos o quanto a tarefa de Saul é impossível de ser realizada e quão improvável é um final satisfatório, contudo, isso não impede o protagonista. Não porque enterrar o filho é o correto a se fazer moralmente, mas porque talvez morrer tentando seja uma forma de expiar seus pecados e dar significado ao que resta de sua vida.
O filme não seria tão impactante sem a excelente direção de László Nemes, que usa de todos os truques que conhece para apresentar uma visão extremamente fidedigna da realidade dos prisioneiros de Auschwitz. Com uma iluminação totalmente natural, um enquadramento extremamente fechado e uma filmagem em um formato próximo ao 4:3, o filme passa uma sensação claustrofóbica de desnorteamento e confusão. Nós, assim como os prisioneiros, estamos em um lugar hostil e nunca sabemos exatamente a sua extensão ou o que ou quem vamos encontrar pela frente. Esse efeito é intensificado pela ausência de uma comunicação clara, já que os prisioneiros e seus captores nem ao menos dividem os mesmos idiomas.
Apesar das várias boas ideias e da extensão dos seus temas, o filme perde um pouco justamente por não conseguir atingir por si só uma grande profundidade emocional e apelar para uma dose de maniqueísmo duvidoso. O protagonista não é nem um pouco empático, tem motivações questionáveis e suas ações não parecem ter um peso dramático suficiente se você não faz parte de um contexto social e religioso que compartilha aquelas memórias. Falta a crueza e a universalidade dessas questões que um povo que não se envolveu com a guerra ou que não é de maioria judia é incapaz de compreender em sua totalidade – apesar de talvez ser extremamente pungente para quem está no outro lado do espectro.
O resultado é um filme arrastado e que parece ter bem mais do que os seus 107 minutos. Há a sensação de que a obra tinha tudo para ser absolutamente arrebatadora, mas que em algum ponto se perdeu, sem que, contudo, tenha perdido sua capacidade de nos fazer refletir. Mesmo com suas falhas, Saul Fia não deixa de ser uma obra absolutamente recomendável para quem sente falta de um filme mais introspectivo, sobretudo porque, em seu lado mais técnico, consegue ser também uma aula do que uma boa direção pode fazer pelo produto final.
Texto: Vinicius Ricardo Tomal
Edição: Renata Bossle
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