Divagações: Laerte-se

Laerte , para mim, sempre existiu. Seus quadrinhos apareciam nas provas da escola, eram compartilhados na internet e podiam até ser encont...

Laerte, para mim, sempre existiu. Seus quadrinhos apareciam nas provas da escola, eram compartilhados na internet e podiam até ser encontrados em alguma revista ou jornal por aí.

Um dia, alguém comentou que ele gostava de se vestir de mulher de vez em quando. Esquisitice de artista, diziam alguns. Vontade de se aparecer, diziam outros. Depois, fiquei sabendo que ele havia decidido se vestir o tempo todo de mulher. Ok, afinal, são só roupas e roupas são uma forma de expressão muito válida e livre. Além disso, o que é exatamente “se vestir de homem” ou “se vestir de mulher”? Então, eventualmente, alguém me questionou: “mas é a Laerte ou é o Laerte”? Até onde eu sabia, era “o”, mas uma busca no Google me corrigiu – agora, é “a” Laerte.

Mas o que exatamente essa mudança de artigo quer dizer? Laerte efetivamente se sente uma mulher? Ou tudo isso é uma experimentação (sem tirar qualquer mérito de uma real experimentação)?

Laerte-se é um documentário – o primeiro documentário brasileiro da Netflix, diga-se de passagem – para quem já se fez essas perguntas ou, pelo menos, sentiu-se intrigado por elas. Afinal, não existe nada de errado em sentir curiosidade, embora eu recomende que ela seja acompanhada por respeito e empatia.

Laerte Coutinho é uma cartunista essencial para quem deseja entender o humor brasileiro dos anos 1980 e 1990 – e ela segue (e muito bem) em atividade até hoje. Aos 58 anos de idade, ela decidiu se assumir como uma mulher transgênero, algo que chamou atenção especialmente por causa de sua idade. Com a mudança veio também uma revolução em seu trabalho, que passou a ser menos focado em personagens fixos.

O documentário Laerte-se tenta justamente entender esse momento de turbilhão na vida da artista, quando tudo mudou. Ao longo de várias entrevistas – onde vemos Laerte com diferentes penteados e cores de cabelo –, a jornalista Eliane Brum (que divide os créditos de direção com Lygia Barbosa) questiona a formação de sua personalidade e identidade de gênero, inclusive entrando em temas delicados, como a morte de um filho, a repressão na adolescência, a dificuldade em lidar com o julgamento alheio, a relação com o corpo, entre outros.

A questão é que, embora seja uma grande defensora dos direitos LGBT+, Laerte se retrai diante das câmeras. Ela desenha corpos andróginos e posa nua para fotografias, mas reluta em abrir as portas de sua casa e falar de si mesma. Assim, o documentário possui uma missão ainda mais difícil do que a habitual, pois precisa olhar por cima do muro criado por sua própria entrevistada.

E consegue? Mais ou menos. Há tanto para ser visto e explorado em relação a essa pessoa absolutamente complexa (como todos nós!), que Laerte-se parece ter apenas arranhado a superfície. É como se tivéssemos acesso a alguns buraquinhos na parede, por onde é possível enxergar algo que nunca seria visto normalmente. Ainda assim, o alcance dessa visão permanece limitado.

Ao mesmo tempo, a produção parece ter consciência disso e assumido para si o compromisso não de desvendar “quem é Laerte” ou “por que Laerte é quem é”, mas de apresentar as dúvidas e inseguranças de uma artista que segue em frente com as certezas que tem – e sabendo que várias delas podem mudar em breve.

Assim, em Laerte-se não há respostas, apenas mais um jeito de viver a vida.

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