Divagações: Aquarius

Nada como uma boa polêmica para promover um filme! Primeiro, o elenco de Aquarius fez um protesto em Cannes contra o processo de impeachm...

Nada como uma boa polêmica para promover um filme! Primeiro, o elenco de Aquarius fez um protesto em Cannes contra o processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff. Depois, o filme perdeu por uma margem pequena de votos a oportunidade de representar o Brasil na categoria Melhor Filme Estrangeiro do Oscar, o que foi interpretado como uma retaliação política. Embora eu não tenha assistido a Pequeno Segredo, acredito que este filme teria cacife para colocar o Brasil entre os indicados. Afinal, é protagonizado por uma atriz reconhecida lá fora, participou de diversos festivais pelo mundo e concorreu a prêmios importantes – inclusive ganhando honrarias em Amsterdã, Sydney e Lima. E antes que alguém questione: quando o assunto é Oscar, ter nome é mais importante do que ser bom, já que boa parte dos votantes não chega a realmente ver os filmes. No final das contas, talvez a polêmica até ajude para outras categorias, como Melhor Atriz (não custa sonhar!).

De qualquer modo, quem for ao cinema terá boas surpresas, já que pouca gente realmente sabe do que se trata a obra. A trama gira em torno de Clara (Sonia Braga), uma viúva e jornalista aposentada que é a única moradora de seu prédio, o Edifício Aquarius. Todos os apartamentos estão vazios porque foram adquiridos por uma construtora que pretende demolir o local, mas Clara possui uma conexão emocional muito forte com aquelas paredes e se recusa a sair. A decisão traz muitas preocupações para seus filhos, especialmente Ana Paula (Maeve Jinkings), e também gera um atrito com o arquiteto Diego (Humberto Carrão), que decide fazer de tudo para tirá-la do apartamento.

O conflito toma proporções por vezes absurdas, mas o texto cuidadoso do roteirista e diretor Kleber Mendonça Filho faz com que o público não perca a suspensão de descrença. Aliás, ele prima pela naturalidade de uma forma muito intensa. Por mais que a protagonista tenha uma personalidade forte, a atuação de Sonia Braga é bastante contida e há muito escondido nos detalhes. Cada gesto de cabeça ou com as mãos, cada vez que ela prende ou solta o cabelo, cada hesitação, cada olhar... Tudo tem um significado.

Além disso, ainda que Aquarius seja primordialmente focado no dia a dia de Clara, acompanhando-a em uma infinidade de tarefas diárias, os coadjuvantes apresentam espectros diferentes do dilema e são muito bem apresentados. O público consegue entender não apenas porque os personagens agem de determinadas maneiras, mas também como eles se tornaram quem são e é possível simpatizar com eles de algum modo. Você, sem dúvida, conhece uma Ana Paula, um Diego ou até um Tomás (Pedro Queiroz), o sobrinho favorito da protagonista. Ao contrário do que acontece em muitas narrativas estadunidenses, os personagens não precisam tomar as decisões que eles tomam por forças maiores que eles – tratam-se de escolhas que precisam de uma profundidade raramente vista.

Essa preocupação com o aspecto humano mais realístico também está presente nas pequenas inconsistências dos personagens, suas falhas e seus preconceitos, inclusive levantando algumas questões bem similares a Que Horas Ela Volta?. Ninguém em Aquarius é perfeito e talvez seja isso o que torna o filme mais impressionante, sua capacidade de se colocar dentro de uma cultura e de questionar comportamentos.

Aliás, vale destacar que a produção também se diferencia por se passar no Recife. Há sotaques, piadas com pessoas do Rio de Janeiro, caminhadas pelas ruas, comércio tradicional e vários outros aspectos que situam o filme no tempo e no espaço – ao mesmo tempo em que o aproximam do público brasileiro. Minha cidade, por exemplo, não se parece com a que vejo na tela, mas sinto que estou vendo algo muito mais próximo a mim do que, digamos, qualquer local de uma novela.

Mas não é só essa naturalidade que faz de Aquarius um bom filme. Ao fazer cinema, Kleber Mendonça Filho também se preocupou com toda a história do Brasil com essa arte. Em vez de se concentrar em criar um forçado estilo único (ou em trazer algo facilmente digerível), ele decidiu seguir em frente utilizando o que ficou para trás como inspiração. Os enquadramentos, os flashbacks, os cortes e até mesmo as cenas de nudez (que geraram mais uma polêmica, dessa vez ligada com a classificação etária) fazem sentido não apenas na história, mas são parte de algo maior, de algo intrinsecamente relacionado com o cinema brasileiro.

Aquarius não irá representar o país em uma categoria específica do Oscar, mas ele é o Brasil em cada fotograma.

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