Divagações: Ainda Estou Aqui

Neste ano, o golpe de 1964 completou 60 anos e, por mais que o discurso ufanista que minimiza as atrocidades e violações de direitos humanos...

Ainda Estou Aqui
Neste ano, o golpe de 1964 completou 60 anos e, por mais que o discurso ufanista que minimiza as atrocidades e violações de direitos humanos tenha esfriado, não falta quem olhe para aquele período com óculos cor-de-rosa. Ainda que esse público provavelmente não vá assistir a Ainda Estou Aqui ou possa descaracterizar completamente sua mensagem, espero que o filme ajude quem nunca viveu o período a entender um pouco sobre as feridas abertas deixadas pela ditadura militar no Brasil.

Dirigido por Walter Salles, Ainda Estou Aqui é baseado no livro de memórias de Marcelo Rubens Paiva. Assim, acompanha o doloroso processo vivido por Eunice Paiva (Fernanda Torres) antes, durante e após a prisão e o desaparecimento de seu marido, o ex-deputado e engenheiro Rubens Paiva (Selton Mello), pelas mãos do exército em 1971, assim como sua infindável busca por respostas e, quem sabe, um semblante de justiça.

Ainda Estou Aqui é um filme comovente, sem dúvidas, mas não de um jeito brega ou gratuito, sendo o tipo de obra que deixa um misto de nó na garganta e um senso pungente de revolta. É, sem dúvidas, uma obra política e admito que minha própria história com o tema, bem como o contato próximo com inúmeros defensores e defensoras dos direitos humanos, acaba me colocando em uma posição complicada para julgar a obra. Ainda assim, acredito que a produção se sustenta muito bem.

Grande parte do sucesso se deve à excelente atuação de Fernanda Torres. Admito que ela não me convenceu nos momentos iniciais do filme, mas ganhou uma força e um protagonismo absurdos, mostrando uma performance cheia de nuances e que expressa bem essa jornada emocional de esperança, fúria e resignação. Selton Mello é bom nos momentos em que aparece e consegue transmitir a simpatia de Rubens Paiva, tornando sua ausência ainda mais sentida. Já o elenco infantil e adolescente não se destaca particularmente, mas também não chega a incomodar.

Em termos de adaptação, houve a escolha consciente de colocar a ênfase em Eunice, deixando de lado até mesmo a visão de Marcelo da situação; uma decisão compreensível, considerando que Guilherme Silveira está longe de ter a experiência dramática para carregar o filme. Ainda assim, as cenas na casa dos Paiva possuem uma espontaneidade e dinâmica muito contagiantes e esse retrato certamente se beneficia da vivência pessoal de Salles – que era amigo da família e frequentava a casa na época.

A direção não tem muitas firulas, mas a proximidade e a vivência pessoal fazem com que o filme mantenha um senso bem palpável de época, com uma reconstrução de cenário auxiliada por diferentes tipos de câmera e uma paleta de cores que grita “verão carioca”. Isso contrasta com a constante tensão envolvendo os militares e a virada tonal que a história dá após a prisão de Rubens. A diferença é ainda realçada pelo ótimo uso da trilha sonora, que pontua toda a trama.

Ainda Estou Aqui é um recipiente da memória coletiva nacional visto sob o prisma íntimo do drama familiar. Apesar de não ser isento de falhas (acho que, por exemplo, seus epílogos se estendem um pouco demais), é tão bem-sucedido em sua mensagem central que é impossível não o recomendar.

Entendo aqueles que não são os maiores fãs do tema, já que a ditadura talvez seja um dos tópicos mais revisitados na produção cinematográfica brasileira. Mas, considerando que já fazia algum tempo desde o último filme deste calibre, acho que dá para deixar essas ressalvas de lado e dar uma chance. Especialmente porque, mais do que um bom filme, Ainda Estou Aqui é uma obra importante, reforçando a necessidade de lembrar daqueles que lutaram pela democracia e pela justiça no Brasil em um tempo em que retrocessos são uma possibilidade real e assustadora.

Outras divagações:

On the Road

Texto: Vinicius Ricardo Tomal
Edição: Renata Bossle

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