Divagações: Clueless
31.3.16
Rever um filme que você gostava no início da adolescência pode ser algo perigoso. É comum que a nostalgia dê lugar à decepção. Assim, confesso que decidi assistir Clueless com algum receio e a perspectiva de que, bem, eu não me identificava realmente com nenhum dos personagens – só queria ter roupas legais e um Josh para chamar de meu.
Com relação às roupas, preciso dizer que o conjunto de blazer e saia em xadrez amarelo definitivamente não me atrai. As personagens criticam a moda masculina da época com as calças caídas (que ficou em voga por aqui durante um bom tempo), mas é preciso dizer que os figurinos delas não envelheceram bem. As saias hiper curtas e os vestidos colados ainda estão por aí, mas dificilmente são relacionados ao mundo fashion.
Obviamente, o objetivo do filme nunca foi o de dar um exemplo de comportamento-padrão. Cher (Alicia Silverstone) é uma menina mimada e com valores bem estranhos. Ela é incentivada por seu pai, Mel Horowitz (Dan Hedaya), a sempre conseguir se sair bem de situações desagradáveis, como convencer os professores a aumentar suas notas por meio de mentiras e tramoias – o que é muito melhor do que simplesmente estudar. Embora ela acredite que tenha boas intenções, seus comportamentos são guiados por um estilo de vida frívolo e egoísta.
Assim, quando um ex-enteado de seu pai, Josh (Paul Rudd), a desafia a fazer algo por outra pessoa, Cher e sua amiga Dionne (Stacey Dash) decidem ‘adotar’ uma aluna transferida, Tai (Brittany Murphy). Elas mudam o estilo da menina ao se vestir e falar e a posicionam no topo na hierarquia da escola, além de tentarem fazê-la namorar o popular Elton (Jeremy Sisto), afastando a garota do skatista Travis (Breckin Meyer), que seria sua opção natural.
A transformação, obviamente, é forçada e não agrada nem mesmo a própria Tai, mas isso não quer dizer que não tenha influências em seu comportamento. As consequências são notadas por Cher ao mesmo tempo em que ela percebe que suas influências ‘casamenteiras’ não são exatamente positivas para todos os envolvidos.
Por mais que Clueless traga uma jornada de crescimento emocional e amadurecimento, o filme deixa o espectador a cargo de perceber o que realmente está errado no estilo de vida de seus protagonistas. Eles não se tornam pobres e nem perdem nada relevante, de modo que as coisas continuarão muito similares após o fim da história, com pequenas mudanças apenas para a protagonista.
O envolvimento com drogas, os valores morais, a percepção de certo e errado, a (falta de) valorização do esforço e a importância de um cartão de crédito não fazem diferença para o andamento da trama, mas são essenciais para dar mais dimensões aos personagens. De outra forma, eles poderiam ser percebidos apenas como jovens burros e inconsequentes, mas a verdade é que eles estão apenas presos a uma realidade bem limitada. Na verdade, esse é um dos principais méritos de Clueless. Embora seja difícil criar uma identificação real com aquelas pessoas, eles não são odiáveis.
Outro aspecto que surpreende no filme é o fato de que ele é, apesar da adaptação, muito mais fiel à Emma (o livro de Jane Austen) do que eu originalmente supunha. Todas as situações e temas abordados pela roteirista e diretora Amy Heckerling são derivados do livro, assim como as motivações dos personagens. Uma mudança significativa envolve Christian (Justin Walker), mas admito que a alteração ficou ótima no contexto e rendeu um humor inteligente.
Para completar, a trilha sonora do filme é espetacular, embora a forma como foi utilizada seja questionável. Algumas das músicas, especialmente quando o longa-metragem se aproxima da conclusão, ficariam muito melhores sem a narração em off dos sentimentos de Cher, embora não ficar quieta seja uma das principais características da personagem.
De forma geral, rever Clueless trouxe boas lembranças e uma percepção mais madura sobre o filme. Acredito que, agora, percebo mais claramente as falhas no comportamento de Cher e seus amigos, considerando um contexto mais amplo. É estranho como um filme sobre pessoas aparentemente detestáveis consegue conversar bem com o público adolescente (vide Mean Girls). Mas acho que errar faz parte de crescer.
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