Divagações: Crazy Rich Asians

É estranho pensar que certas obras, de modo completamente acidental e não pretendido pelos seus criadores, geram reflexões puramente com b...

É estranho pensar que certas obras, de modo completamente acidental e não pretendido pelos seus criadores, geram reflexões puramente com base no seu subtexto. É até mesmo injusto avaliar estes ‘artefatos culturais’ não pelo que são, mas pelo que eles – mesmo que indiretamente – retratam ou incentivam. Ao mesmo tempo, também é impossível descolar a opinião da experiência subjetiva daquele que consome ou aprecia uma obra, de modo que universos diferentes geram perspectivas diferentes sobre o mesmo objeto.

Isso me leva à seguinte reflexão: qual é o valor da visão de um crítico – enviesada por suas experiências pessoais – quando não há uma pretensão de universalidade? Ou devemos adotar a perspectiva de Oscar Wilde, do crítico como artista, onde a mais alta crítica nada mais é do que o retrato da alma de seu criador e seu valor está justamente em sua individualidade? Uma crítica voltada ao “eu” tem serventia se ela não se comunica com mais ninguém? Para quem a crítica se direciona afinal de contas? Para quem escreve ou para quem a lê?

Mas, obviamente, Crazy Rich Asians não tem pretensão nenhuma de responder qualquer uma dessas coisas. Na verdade, o filme não tem relação nenhuma com o que falei até aqui. Porém, ele me suscitou essas questões justamente por ser tão sem tato a respeito do que mostra e fetichiza. Assim, eu me pergunto: será que sou só eu que sou incapaz de empatizar com essas situações e pessoas ou realmente há algo de errado nisso tudo?

Como o nome já diz, Crazy Rich Asians fala de asiáticos (chineses, para ser mais específico) ricos, daqueles milionários caricaturais, do tipo que você encontra em desenhos animados. No filme, Rachel Chu (Constance Wu), uma jovem professora universitária sino-americana, viaja para Singapura para participar de uma festa de casamento e, no processo, conhecer a família de seu namorado, Nick Young (Henry Golding) – que ela descobre ser o herdeiro de uma companhia multimilionária que basicamente manda no país. O resto da história vocês já devem conhecer de outros verões: a desaprovação dos pais que não aceitam uma “plebeia” se relacionando com o filho, a luta de Rachel para se provar no mundo dos ricos e famosos, e muita, mas muita fetichização da riqueza e consumismo.

Ainda que, no passado, explorar o mundo dessa fatia de 1% da população fosse algo que pudesse ser feito com leveza e humor, a mesma proposição soa como algo de mau gosto em uma era de pessimismo e cinismo. É difícil acreditar que pessoas capazes de comprar um par de brincos de um milhão e meio de dólares “trabalham duro” e “mereçam sua posição”, especialmente quando falamos da Singapura, o segundo país asiático com o menor nível de equidade financeira. Ou seja, provavelmente, todo o império (fictício) da família Young foi construído sobre trabalhadores de baixa qualificação, que ganhavam centavos ao dia.

Também é difícil acreditar que os personagens “querem manter suas tradições” e “não gostam dos americanos” quando todos são cristãos, estudaram no exterior e assumiram nomes ocidentais. É complicado engolir que eles “dão valor a família” quando certas figuras estão sempre ausentes, mais preocupadas com negócios do que com momentos fundamentais na vida de entes queridos.

Toda a substância de Crazy Rich Asians se enrosca em contradições e na ausência de autorreflexão. Rachel é uma professora de economia, mas, por algum motivo – ainda que consciente de toda a história do desenvolvimento econômico da Ásia continental –, ela não pestaneja diante das situações apresentadas e não questiona em nenhum momento as implicações éticas de todo o exagero dos seus anfitriões. Sem contar com a impossibilidade de toda a trama e da completa subserviência da protagonista nesse contexto. Porém, isso é algo que eu estou relativamente disposto a relevar.

Ok. É possível argumentar que o filme (e o livro original), na verdade, passa uma mensagem contrária à valorização do materialismo. Isso até poderia ser verdade, mas qualquer possibilidade de tom crítico é jogada pela janela nos cinco minutos finais da projeção, que transformam a protagonista em cúmplice de todos os erros que havia observado até então. O resultado consolida sua mensagem como hipócrita na melhor das ocasiões e diretamente nociva nas piores. Talvez, a única redenção de Crazy Rich Asians esteja em ter sido tão pouco competente no que engendra esse tipo de crítica.

E isso me leva de volta ao primeiro ponto. Não me entendam mal: mais do que ninguém, eu acredito que todos devem ter direito aos frutos do seu trabalho e do seu esforço. Mas será que só eu vejo nestes excessos, na vaidade e ganância, no consumismo exacerbado e na mercantilização das relações humanas, o retrato de como o nosso sistema de desenvolvimento econômico falhou em proporcionar condições satisfatórias de desenvolvimento? Sou só eu que me incomodo ao ouvir alguém dizer que “só gastaria 20 milhões em um casamento” como piada?

Espero que não, mas não duvido de mais nada.

Como entretenimento, Crazy Rich Asians é bonitinho e previsível. O par principal tem uma boa química, a representatividade asiática – ainda que retrate majoritariamente personagens rasos como um pires e totalmente caricatos –, é até bem-vinda (por mais que seus motivos sejam puramente comerciais). Temos algumas boas piadas, uma composição interessante para a mesma história batida e uma fotografia competente que valoriza a beleza de Singapura. Como eu disse, é um filme competente, ainda que meio cafona e completamente escapista.

Mas isso é o de menos. O filme não vai me marcar por essas coisas, mas pela raiva que senti em ver esses comportamentos nocivos retratados na tela do cinema, na possível realização de que alguém pode achar que estou ressentido com gente rica apenas porque elas tiveram o privilégio de nascer milionárias. Tudo isso leva à tarefa de pensar na crítica como algo um pouquinho mais meu – subitamente, ela não é mais sobre o que o diretor Jon M. Chu fez ou deixou de fazer com o seu filme, mas sobre o que eu, com a minha vivência, senti e pensei sobre isso tudo. E eu enxergo valor nisso.

Texto: Vinicius Ricardo Tomal
Edição: Renata Bossle

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