Divagações: Bambi

Minha memória infantil é composta por diversos pequenos momentos que parecem não fazer muito sentido, mas que causaram grandes marcas em m...

Minha memória infantil é composta por diversos pequenos momentos que parecem não fazer muito sentido, mas que causaram grandes marcas em mim. Um desses detalhes guardados em meu cérebro envolvia a cena do incêndio na floresta, vista em Bambi. Eu não entendia muito bem o que estava acontecendo, mas estava bastante impressionada e perguntei algo para um adulto que estava por perto. Até hoje não sei se ele não estava prestando atenção no que acontecia na tela ou se eu estava realmente confusa, mas a verdade é que demorei anos para descobrir certos detalhes da história.

Como essa não é exatamente a animação favorita de ninguém e as músicas não são tão frequentes em compilações quanto as notas entoadas por princesas, nunca cheguei a revisitar Bambi. Meu segundo contato real com o personagem (ignorando breves cenas utilizadas em outros contextos, desenhos para pintar e afins) foi com o livro original, de Felix Salten, lançado pela primeira vez no Brasil apenas em 2015.

A obra é um maravilhoso exercício de escrita, feita totalmente a partir do ponto de vista de um animal que age por instinto e sempre respeita a natureza. Ao mesmo tempo, a sociedade da floresta tem uma estrutura que lembra a humana, com uma hierarquia clara e uma noção de nobreza que separa as espécies. Para completar, também se trata de um material não exatamente adequado para a forma como a Disney se comunica com as crianças. Há muitas mortes e até um incesto (relacionamento entre primos pode?).

Por isso, decidi rever a animação, lançada em 1942 (19 anos após o livro), em plena 2ª Guerra Mundial, e que acabou sendo um fracasso financeiro, sem lançamento na Europa. Já nas primeiras sequências é possível perceber que o filme traz um primor técnico raramente visto. As imagens parecem saídas dos mais belos livros ilustrados infantis, com os cenários parecendo um misto de pintura e fotografia, bem mais realistas que os personagens animados (ainda que eles, por si só, sejam bastante detalhados).

Em pouco tempo, fui também envolvida por uma trilha sonora muito bem cuidada e perfeitamente coerente com a obra, com vocais que expressam o sentimento dos personagens e, ao mesmo tempo, o barulho da chuva. Pouco adequado para uma adaptação teatral na Broadway – algo comum para muitas produções do estúdio a partir dos anos 1990 –, mas delicado e muito bem pensado nesse contexto.

No filme, Bambi (Donnie Dunagan/Hardie Albright/John Sutherland) é um veado-de-cauda-branca que vive com sua mãe (Paula Winslowe) na floresta. Seu nascimento foi comemorado por todos os animais e, aos poucos, acompanhamos seu desenvolvido, com os passos ganhando firmeza, as primeiras palavras, o primeiro inverno e os primeiros contatos com outros animais, especialmente o coelho Thumper (Peter Behn/Sam Edwards), o doninha-fedorenta Flower (Stan Alexander/Tim Davis/Sterling Holloway), e a corça Faline (Cammie King Conlon/Ann Gillis), que tem a sua idade e, em seu devido tempo, desperta seu interesse romanticamente.

Com o tempo, entretanto, Bambi também vai tomando consciência das dificuldades da vida a seu redor. Seu principal medo é o homem, uma criatura que ele não compreende muito bem e que tem grande poder de destruição. Cada vez que o homem surge na floresta, os animais correr e buscar por um procurar refúgio, o que nem sempre é possível e gera consequências trágicas na vida do protagonista.

Como uma história de adaptação, sofrimento e resiliência, Bambi é um filme que não parece apelar diretamente para as crianças pequenas. Ao mesmo tempo, entendo o raciocínio dos produtores da época: essa é uma história bonita o suficiente para merecer uma adaptação. Além disso, em um momento histórico bastante assustador, uma trama como essa deve funcionar melhor que os tradicionais contos de fadas.

Obviamente, o tom do filme da Disney é diferente do livro original e diversos momentos importantes da história foram alterados. A ausência do irmão de Faline, que adicionaria mais um episódio trágico e serviria para fortalecer e endurecer Bambi como personagem, diz muito sobre a necessidade de não assustar o público – da mesma forma como o divertido coelho Thumper surge em um contexto onde um ‘alívio cômico’ normalmente não seria bem-vindo. Ainda assim, a leveza não prejudica em demasiado o objetivo da história original, mantendo seu cerne.

Mais bonito do que eu lembrava, Bambi é um filme onde tudo foi pensado com bastante cuidado – da paleta de cores de cada cena às canções, passando pelo que é mostrado na tela e o que fica apenas subentendido. Mesmo que esse seja um filme feito para crianças, é preciso crescer para conseguir apreciar tudo o que ele tem a oferecer.

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