Divagações: Shin Gojira
21.8.19
O grande problema dos filmes americanos do Godzilla, segundo seus fãs mais fervorosos, são os protagonistas humanos. Enquanto o público está lá para ver os monstros, as produtoras se apegam à noção bastante estranha de que os espectadores são incapazes de se envolver com um filme sem que haja uma pessoa no papel principal. Entretanto, diversas vezes já foi comprovado que, sim, existe quem não está nem aí para a dimensão humana da coisa.
Com a estreia de Godzilla: King of the Monsters – cujo elo mais fraco está justamente no falatório ininterrupto dos seres humanos, que correm para lá e para cá enquanto o lagartão se estapeia com outras criaturas titânicas –, essa discussão voltou à tona com força. A princípio, as coisas pareciam rumar para um consenso de que não é isso o que o público quer ver em um filme do Godzilla.
Mas, se isso é verdade, por que o filme da série de maior bilheteria no Japão (e, talvez, um dos que têm os defensores mais apaixonados) é justamente um exemplar que subverte esta regra? O que torna Shin Gojira bom quando basicamente tudo que ele é, é um falatório ininterrupto de humanos correndo para lá e para cá?
Contando como o primeiro reboot completo da série japonesa, Shin Gojira nos dá a interpretação mais bizarramente realista da série até hoje. Na trama, um estranho acidente na baía de Tóquio coloca as autoridades japonesas em alerta e inicia uma série de decisões políticas que se tornam cada vez mais dramáticas até que, afinal, um monstro gigante surge das águas para causar destruição.
No meio desse turbilhão está Rando Yaguchi (Hiroki Hasegawa), um jovem membro do parlamento que vê na engessada estrutura política japonesa um grande problema para se enfrentar uma situação dessa magnitude. Para completar, ele precisa encarar a pouca colaboração do primeiro ministro, Seiji Okochi (Ren Osugi), e a interferência constante dos Estados Unidos e sua diplomata Kayoko Ann Patterson (Satomi Ishihara). À medida em que a situação se agrava e vidas se perdem, Rando e sua equipe tentam encontrar uma forma de lidar com o monstro e salvar o país.
Com isso, Shin Gojira é um filme que divide opiniões. Mesmo entre os fãs de longa data, muitos que consideram o ritmo lento, os diálogos excessivos e a pouca presença do monstro titular um grande aborrecimento. Em resumo, não são poucos os que consideram Shin Gojira como um filme chato.
Ainda que tudo isso seja verdade – e não faltem outros problemas ao filme, como atuações engessadas, efeitos especiais pobres e um visual um pouco amador –, eu não poderia considerar o resultado final mais distante disso. Afinal, a despeito de tudo que poderia dar errado (incluindo o fato de que o longa-metragem aposta justamente nos elementos que mais gente desgosta na série), Shin Gojira brilha justamente por suas ideias provocativas e pelo retrato pungente de uma sociedade japonesa pós-Fukushima.
Muito disso vem da equipe criativa. Para alguns, o nome do diretor, Hideaki Anno, irá soar familiar: ele é o responsável por Shin Seiki Evangerion, a série que talvez seja a mais influente e importante em toda a história da animação japonesa.
Para este longa-metragem, ele trouxe consigo alguns colegas da série de animação, como o co-diretor Shinji Higuchi (que foi diretor de arte em Shin Seiki Evangerion) e o músico Shiro Sagisu. Este último, aliás, entrega uma trilha sonora fenomenal, que mistura os temas clássicos da série Godzilla com alguns arranjos bastante familiares para quem gosta de mechas, dando pompa e urgência às cenas em que, basicamente, um grupo de políticos e cientistas discute por minutos a fio.
Além disso, Hideaki Anno é um grande fã de obras mais introspectivas e de alto-conceito. Ainda que não mergulhe tanto na dimensão subjetiva dos seus personagens desta vez, ele certamente empresta da sua experiência em animação uma visão bastante fresca sobre o que torna Godzilla um tema interessante. Assim, passando-se quase que completamente dentro das salas de reunião do parlamento japonês, Shin Gojira é uma sátira política, onde interesses individuais, a percepção do público e a opinião internacional são por muitas vezes preocupações maiores e mais assustadoras do que um lagarto gigante caminhando pela cidade e derrubando prédios.
No filme, a burocracia é pesada, as decisões são meias-medidas e a demora para o governo se comprometer com um plano de ação progressivamente aumenta os riscos e os problemas causados. Ainda assim, o longa-metragem não é caricatural ou jocoso com a classe política, optando por apontar alguns dedos, mas sem ser escancarado demais na sua sátira. Além disso, existe uma clara influência de Aaron Sorkin – inclusive, Anno admite tirar inspiração de The Social Network para seus diálogos acelerados e que pontuam a ação.
Para completar, os temas certamente são evocativos e devem pesar fortemente para o público japonês. Os ataques de Godzilla emulam em muitos aspectos os terremotos que levaram ao rompimento do reator de Fukushima em 2011 – dos tsunamis ao pânico com a radiação. Dessa forma, a metáfora talvez seja a mais pungente e próxima da sociedade contemporânea japonesa.
E, em meio a tudo isso, Godzilla. Ainda que o design do monstro cause algum estranhamento (em grande parte proposital) e os efeitos especiais sejam um enorme passo para trás se comparados a versão da Legendary, não há como negar que o monstro continua impondo respeito. Aliás, o caminhar lento e premeditado talvez seja até mais assustador e não natural do que em versões tecnologicamente mais avançadas.
Assim, enquanto o Godzilla das produções estadunidenses ainda soa como um animal titânico, o dito Shin Godzilla é uma criatura quase divina, que avança alheia à intervenção humana. Ele está constantemente evoluindo e se tornando mais forte, fazendo valer o nome do filme (onde o kanji para Shin pode ser lido tanto como “novo” quanto como “divino”).
Além disso, o pouco tempo de tela não se confunde com uma ausência na história. Mais do que nunca, este filme é sobre o Godzilla, não como personagem (já que propositalmente essa é a encarnação menos carismática e expressiva do monstro), mas como uma força da natureza e suas consequências para uma sociedade como a nossa. As ações do monstro pautam a história e servem como o real antagonista, fazendo com que essa seja uma das raras vezes em que você efetivamente torce pela humanidade, para que todos coloquem suas diferenças de lado e lutem contra a ameaça em comum.
De todo modo, Shin Gojira é um filme interessante e bastante único em sua proposta, claramente feito por uma equipe que não só tinha uma profunda reverência ao material original, mas também ideias muito claras de como trazer o conceito para o mundo contemporâneo. Obviamente, essas ideias não vão agradar a todos, porém, eu acredito que vale mais a pena fazer algo que alguns amem e outros odeiem do que algo que todos considerem medíocre. Shin Gojira assume riscos de peito aberto – e merece crédito por isso.
Outras divagações:
Godzilla: King of the Monsters
Texto: Vinicius Ricardo Tomal
Edição: Renata Bossle
Com a estreia de Godzilla: King of the Monsters – cujo elo mais fraco está justamente no falatório ininterrupto dos seres humanos, que correm para lá e para cá enquanto o lagartão se estapeia com outras criaturas titânicas –, essa discussão voltou à tona com força. A princípio, as coisas pareciam rumar para um consenso de que não é isso o que o público quer ver em um filme do Godzilla.
Mas, se isso é verdade, por que o filme da série de maior bilheteria no Japão (e, talvez, um dos que têm os defensores mais apaixonados) é justamente um exemplar que subverte esta regra? O que torna Shin Gojira bom quando basicamente tudo que ele é, é um falatório ininterrupto de humanos correndo para lá e para cá?
Contando como o primeiro reboot completo da série japonesa, Shin Gojira nos dá a interpretação mais bizarramente realista da série até hoje. Na trama, um estranho acidente na baía de Tóquio coloca as autoridades japonesas em alerta e inicia uma série de decisões políticas que se tornam cada vez mais dramáticas até que, afinal, um monstro gigante surge das águas para causar destruição.
No meio desse turbilhão está Rando Yaguchi (Hiroki Hasegawa), um jovem membro do parlamento que vê na engessada estrutura política japonesa um grande problema para se enfrentar uma situação dessa magnitude. Para completar, ele precisa encarar a pouca colaboração do primeiro ministro, Seiji Okochi (Ren Osugi), e a interferência constante dos Estados Unidos e sua diplomata Kayoko Ann Patterson (Satomi Ishihara). À medida em que a situação se agrava e vidas se perdem, Rando e sua equipe tentam encontrar uma forma de lidar com o monstro e salvar o país.
Com isso, Shin Gojira é um filme que divide opiniões. Mesmo entre os fãs de longa data, muitos que consideram o ritmo lento, os diálogos excessivos e a pouca presença do monstro titular um grande aborrecimento. Em resumo, não são poucos os que consideram Shin Gojira como um filme chato.
Ainda que tudo isso seja verdade – e não faltem outros problemas ao filme, como atuações engessadas, efeitos especiais pobres e um visual um pouco amador –, eu não poderia considerar o resultado final mais distante disso. Afinal, a despeito de tudo que poderia dar errado (incluindo o fato de que o longa-metragem aposta justamente nos elementos que mais gente desgosta na série), Shin Gojira brilha justamente por suas ideias provocativas e pelo retrato pungente de uma sociedade japonesa pós-Fukushima.
Muito disso vem da equipe criativa. Para alguns, o nome do diretor, Hideaki Anno, irá soar familiar: ele é o responsável por Shin Seiki Evangerion, a série que talvez seja a mais influente e importante em toda a história da animação japonesa.
Para este longa-metragem, ele trouxe consigo alguns colegas da série de animação, como o co-diretor Shinji Higuchi (que foi diretor de arte em Shin Seiki Evangerion) e o músico Shiro Sagisu. Este último, aliás, entrega uma trilha sonora fenomenal, que mistura os temas clássicos da série Godzilla com alguns arranjos bastante familiares para quem gosta de mechas, dando pompa e urgência às cenas em que, basicamente, um grupo de políticos e cientistas discute por minutos a fio.
Além disso, Hideaki Anno é um grande fã de obras mais introspectivas e de alto-conceito. Ainda que não mergulhe tanto na dimensão subjetiva dos seus personagens desta vez, ele certamente empresta da sua experiência em animação uma visão bastante fresca sobre o que torna Godzilla um tema interessante. Assim, passando-se quase que completamente dentro das salas de reunião do parlamento japonês, Shin Gojira é uma sátira política, onde interesses individuais, a percepção do público e a opinião internacional são por muitas vezes preocupações maiores e mais assustadoras do que um lagarto gigante caminhando pela cidade e derrubando prédios.
No filme, a burocracia é pesada, as decisões são meias-medidas e a demora para o governo se comprometer com um plano de ação progressivamente aumenta os riscos e os problemas causados. Ainda assim, o longa-metragem não é caricatural ou jocoso com a classe política, optando por apontar alguns dedos, mas sem ser escancarado demais na sua sátira. Além disso, existe uma clara influência de Aaron Sorkin – inclusive, Anno admite tirar inspiração de The Social Network para seus diálogos acelerados e que pontuam a ação.
Para completar, os temas certamente são evocativos e devem pesar fortemente para o público japonês. Os ataques de Godzilla emulam em muitos aspectos os terremotos que levaram ao rompimento do reator de Fukushima em 2011 – dos tsunamis ao pânico com a radiação. Dessa forma, a metáfora talvez seja a mais pungente e próxima da sociedade contemporânea japonesa.
E, em meio a tudo isso, Godzilla. Ainda que o design do monstro cause algum estranhamento (em grande parte proposital) e os efeitos especiais sejam um enorme passo para trás se comparados a versão da Legendary, não há como negar que o monstro continua impondo respeito. Aliás, o caminhar lento e premeditado talvez seja até mais assustador e não natural do que em versões tecnologicamente mais avançadas.
Assim, enquanto o Godzilla das produções estadunidenses ainda soa como um animal titânico, o dito Shin Godzilla é uma criatura quase divina, que avança alheia à intervenção humana. Ele está constantemente evoluindo e se tornando mais forte, fazendo valer o nome do filme (onde o kanji para Shin pode ser lido tanto como “novo” quanto como “divino”).
Além disso, o pouco tempo de tela não se confunde com uma ausência na história. Mais do que nunca, este filme é sobre o Godzilla, não como personagem (já que propositalmente essa é a encarnação menos carismática e expressiva do monstro), mas como uma força da natureza e suas consequências para uma sociedade como a nossa. As ações do monstro pautam a história e servem como o real antagonista, fazendo com que essa seja uma das raras vezes em que você efetivamente torce pela humanidade, para que todos coloquem suas diferenças de lado e lutem contra a ameaça em comum.
De todo modo, Shin Gojira é um filme interessante e bastante único em sua proposta, claramente feito por uma equipe que não só tinha uma profunda reverência ao material original, mas também ideias muito claras de como trazer o conceito para o mundo contemporâneo. Obviamente, essas ideias não vão agradar a todos, porém, eu acredito que vale mais a pena fazer algo que alguns amem e outros odeiem do que algo que todos considerem medíocre. Shin Gojira assume riscos de peito aberto – e merece crédito por isso.
Outras divagações:
Godzilla: King of the Monsters
Texto: Vinicius Ricardo Tomal
Edição: Renata Bossle
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