Divagações: Tár

Tár não é um filme fácil de assistir. A protagonista não é uma pessoa que consigo engolir com facilidade. A maneira como a narrativa se des...

Tár
Tár não é um filme fácil de assistir. A protagonista não é uma pessoa que consigo engolir com facilidade. A maneira como a narrativa se desenrola é lenta, até que tudo degringola e cai em uma espiral de acontecimentos desagradáveis. Ainda assim, este é um longa-metragem muito interessante. Ele trata sobre privilégios, sobre as mudanças de regras sociais, sobre saber “jogar o jogo”. Além de ser uma obra sobre aparência e revelações, sobre o que há por trás da cortina, por assim dizer.

Lydia Tár (Cate Blanchett) é uma maestra com um currículo impressionante. Ela já fez de tudo, já conquistou de tudo – inclusive o combo Emmy, Grammy, Oscar e Tony – e, agora, comanda a Orquestra de Berlim, trabalhando ao lado da esposa (Nina Hoss) e vivendo uma vida confortável em um apartamento de luxo, onde se divide entre ensaiar e cuidar de sua filha (Mila Bogojevic). Absolutamente apaixonada pelo que faz, ela se dedica com muito vigor à música e menospreza abertamente os “robôs”, intérpretes sem personalidade, que copiam a visão de outros ou simplesmente não sabem se entregar com o mesmo ardor.

A questão é que, sob certos aspectos, é ela quem mais parece um robô, justamente por ser tão perfeita, tão dedicada, tão conhecedora de tudo, tão dona de si. Lydia só se torna realmente humana quando suas rachaduras começam a aparecer – e ela não é exatamente uma boa pessoa. Inclusive, muitas de suas falhas poderiam ser jogadas para baixo do tapete por conta de seus privilégios de mulher branca, rica e talentosa (e ela joga com isso), mas há algo que ultrapassa a linha: o suicídio de Krista Taylor (Sylvia Flote), uma jovem com quem ela aparentemente teve um relacionamento e a quem sabotou profissionalmente.

Para completar, Tár traz para a conta mais duas mulheres. A única pessoa com um conhecimento maior sobre Krista é a assistente Francesca Lentini (Noémie Merlant), uma aspirante a maestra que pode estar prestes a levar mais uma rasteira. Além disso, a orquestra recebe uma nova celista, Olga Metkina (Sophie Kauer), por quem Lydia se encanta, mas que está usando seu próprio conjunto de regras.

Aliás, o jogo de poder em que todas essas pessoas participam é bastante intricado e gira ao redor da protagonista; a princípio, ela detém as cartas e sabe fazer com que tudo funcione a seu favor. Contudo, Lydia não parece estar ciente de que as coisas mudaram. Ao ser professora visitante de uma universidade, por exemplo, ela humilha um aluno (Zethphan D. Smith-Gneist). Há alguns anos, talvez sua postura durona e acima de “trivialidades” fosse elogiada. Hoje, contudo, impor-se como a pessoa certa em uma conversa sobre arte e sexualidade (ou mesmo sobre a relação entre autor e obra) simplesmente não parece ser de bom tom.

E a queda é brusca. Com direção e roteiro de Todd Field, Tár tem um ritmo bastante irregular e suas cenas finais beiram o ridículo. Ainda assim, o conjunto funciona justamente pela construção lenta da protagonista e pela atuação de Cate Blanchett. A atriz usa a mesma energia para ser uma maestra criativa, uma verdadeira força da natureza musical, e para cair em um círculo vicioso de desespero.

O fato de que há uma sucessão de coisas efetivamente acontecendo no terço final da produção, contudo, não torna o longa-metragem mais fácil de assistir. Tár é um soco no estômago do início ao fim, lidando com a forma como a construção cuidadosa de uma imagem pode se desfazer a qualquer momento. Não há esforço ou talento que possam salvar a protagonista, envolvida em um escândalo que mexe com os ânimos sociais. Ao mesmo tempo, privilégios já conquistados podem continuar abrindo portas.

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