Divagações: Aftersun

Suponho que seja um gosto adquirido, mas eu realmente aprecio filmes que não trazem exatamente uma história, mas um apanhado de momentos. Vá...

Aftersun
Suponho que seja um gosto adquirido, mas eu realmente aprecio filmes que não trazem exatamente uma história, mas um apanhado de momentos. Vários pequenos acontecimentos se sucedem na tela, às vezes sem uma conexão direta clara, e retratam uma época na vida dos personagens. O ideal é que o ponto de chegada e o de partida sejam diferentes, que ao menos uma mudança de perspectiva tenha ocorrido; ainda assim, o grau de satisfação proporcionado não depende disso, nem está necessariamente relacionado com o que acontece.

Aftersun é um desses filmes. Tudo se passa durante as férias escolares de Sophie (Frankie Corio), uma menina que acabou de fazer 11 anos. Ela mora com a mãe e, neste verão, vai passar seus últimos dias de folga na companhia do pai, Calum (Paul Mescal), em um hotel na Turquia. Eles viajam de avião, se decepcionam com a hospedagem, fazem passeios turísticos, mergulham em alto mar, jogam bilhar, ficam na piscina, vão à praia, frequentam fliperamas, curtem jantares com apresentações musicais e ficam entediados. Nada disso é particularmente memorável – nem mesmo o primeiro beijo da garota –, mas o conjunto é marcante.

Com direção e roteiro de Charlotte Wells, a produção é levemente baseada em um verão que ela mesma passou com o pai. Talvez seja por conta disso que o filme não se apegue necessariamente a uma trama, mas à comunicação de um sentimento. Em seu primeiro longa-metragem após três curtas, a cineasta não tem medo de entregar algo que é autoral e pessoal (e isso aparece claramente na tela).

Assim, tendo tanto charme quanto as férias baratas que pai e filha passam na Turquia (interprete essa frase como quiser), Aftersun fez sucesso em sua carreira no circuito de festivais e até mesmo conquistou uma indicação ao Oscar para Mescal. O ar decadente também é nostálgico, algo que gera uma identificação fácil, mesmo que o seu pequeno recanto europeu tenha sido uma praia do litoral paranaense.

E, obviamente, o longa-metragem não é sobre as férias, mas sobre o relacionamento de pai e filha. Embora a menina ainda seja muito nova para entender certas coisas, ela já é capaz de perceber as rachaduras na fachada que seu progenitor apresenta. Em uma noite em particular, que parece ser destinada a alguma desgraça, é ela quem se comporta como uma adulta e lida com tudo de uma forma madura. Em determinada sequência, é a adolescente envergonhada que pega um microfone e vai cantar desafinadamente e sozinha em frente a uma plateia.

Outra leitura possível é que se trata de um filme sobre depressão. Aftersun traz um olhar infantil para impedir que o estado mental de Calum seja tão doloroso (ou, talvez, para enfatizar a “felicidade não vivida”). Frequentemente, o personagem parece estar prestes a atingir seu limite; ainda assim, Mescal consegue manter certa leveza na performance. Essa construção por meio do contraste – que acontece em vários níveis – é particularmente interessante. Afinal, o ambiente festivo ao redor do protagonista e o claro esforço em demonstrar afeto à filha não diminuem algo que está acontecendo em outra esfera.

Embora não seja exatamente um passeio no parque, este filme continua sendo um acalentador de corações. Há uma mensagem aqui sobre laços e vínculos profundos entre duas pessoas, mas o que torna Aftersun único é justamente sua habilidade em conseguir mostrar que amar não é algo fácil ou simples.

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