Divagações: Isle of Dogs

Eu tenho medo de cachorro. Bastante. Outro dia, alguém entrou no elevador com um cão de pequeno porte e eu congelei, parei de respirar, ma...

Eu tenho medo de cachorro. Bastante. Outro dia, alguém entrou no elevador com um cão de pequeno porte e eu congelei, parei de respirar, mal consegui me mexer, só fazia que não com o dedo e assustei pra caramba meu colega ser humano (que até tentou argumentar que o bicho não morde, mas viu que não iria adiantar). O cachorro, obviamente, não deu a mínima para todo o espetáculo.

Mas, ainda bem que, na segurança da sala do cinema e com uma pessoa compreensiva ao meu lado, eu consegui assistir Isle of Dogs. Não dava para perder de ver uma obra de Wes Anderson no cinema, afinal de contas.

O filme se passa no Japão e todos os latidos estão convenientemente traduzidos para o inglês. Por sua vez, para entender o que as pessoas estão falando, dependemos de tradutores que nem sempre estão disponíveis. Ou seja, o objetivo é que você realmente se identifique mais com os animais de quatro patas. Essa não é uma escolha inédita, mas foi feita de uma forma bastante elegante e que coloca o público na fantasia logo de cara.

Basicamente, a cidade de Megasaki é controlada a muitas gerações por uma família que detesta cachorros. Eles têm liderado vários esforços para expulsar os animais do local e, agora, com a ameaça de diversas doenças, conseguiram transferir todos os bichos da cidade para uma ilha próxima, também usada como lixão. Mas um menino de 12 anos, Atari (Koyu Rankin), que tem uma conexão com a família do prefeito, decide fugir de casa para resgatar seu cachorro, Spots (Liev Schreiber).

Lá chegando, ele recebe a ajuda de um grupo democrático de machos alfa formado por quatro cães que têm muita saudade de seus antigos donos e dos mimos que recebiam – Rex (Edward Norton), King (Bob Balaban), Boss (Bill Murray) e Duke (Jeff Goldblum) – e por um vira-lata de rua, Chief (Bryan Cranston). Na cidade, por sua vez, ele conta com o apoio de um grupo estudantil que publica um jornal, dá voz às teorias de uma intercambista (Greta Gerwig) e apoia um candidato de oposição, Professor Watanabe (Akira Ito).

Assim, embora essa pudesse facilmente ser uma história sobre um menino e um cachorro, Isle of Dogs se torna um misto de fábula e comentário político. Não recomendo que o público procure por referências diretas a personalidades atuais, mas há alguns pontos que caem muito bem no contexto nacional, desde a família que controla a cidade a séculos até a voz da minoria que não passa de um incômodo dentro de um sistema de votação. Eu diria que são questões atemporais e que apenas somam à qualidade da produção (mas, sinceramente, gostaria muito que esse não fosse o caso).

Outro ponto que precisa ser levantado é a forma como o Japão foi retratado. Wes Anderson, obviamente, não é japonês. Mas ele é um diretor fortemente movido por suas referências visuais e a escolha consciente de levar essa história para o país veio com inúmeras delas, além de uma trilha sonora fantástica (assinada por Alexandre Desplat), um trabalho de sonorização invejável e um grande respeito. É claro que essa não deixa de ser uma visão de um autor ocidental sobre o Japão, mas isso não quer dizer que esse seja um ponto necessariamente negativo. Acredito que outras pessoas possam tratar sobre esse ponto com muito mais bagagem do que eu, mas – pelo que tenho visto – há muito mais elogios que críticas negativas.

Com um ar melancólico e decadente, Isle of Dogs também não suaviza a situação dos cachorros. Eles lutam por comida, há referências a prática de canibalismo e as doenças dão um aspecto aterrorizante para vários deles. Ou seja, esse talvez não seja o melhor filme do mundo para crianças pequenas (a classificação indicativa no Brasil é 12 anos). Em contrapartida, diversos clichês são tomados como verdades absolutas, como a lealdade aos humanos e a vontade de brincar de buscar uma vareta.

Nesse pequeno mundo cheio de contradições, Wes Anderson faz a sua mágica e consegue extrair algum tipo de beleza que é maior do que aquilo que vemos na tela.

E é incrível que eu não tenha mencionado isso até agora, mas Isle of Dogs é uma animação. Inclusive, por ser uma animação em stop-motion com o mesmo diretor, vários atores habituais do cineasta, o mesmo diretor de fotografia (Tristan Oliver), muitos técnicos de animação em comum e protagonizada por bichinhos, há muitas comparações a serem feitas com Fantastic Mr. Fox. Sinceramente, o filme não foge disso, mas também não abraça o conceito com todas as forças (e há um divertido uso de animação tradicional em 2D). Para completar, há uma distância de nove anos entre uma produção e outra, o que traz novas técnicas e mais amadurecimento para a mesa. É bonito de ver.

Outras divagações:
The Royal Tenenbaums
The Life Aquatic with Steve Zissou
Fantastic Mr. Fox
Moonrise Kingdom
The Grand Budapest Hotel

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