Divagações: Koe no katachi

Como você se tornou a pessoa que você é hoje? Se você para pensar, a resposta para essa pergunta não é nem um pouco simples. Foram vários ...

Como você se tornou a pessoa que você é hoje? Se você para pensar, a resposta para essa pergunta não é nem um pouco simples. Foram vários momentos, de alegria, de tristeza, de desespero, de medo, de euforia, de amor, de dor... Koe no katachi é um filme sobre alguns elementos que moldaram essencialmente seus personagens, transformando-os em pessoas que são diferentes do que poderíamos inicialmente pensar.

Shoya Ishida (Mayu Matsuoka) é um menino travesso e cheio de energia, bem integrado em sua turma e com alguns amigos próximos. Quando Shoko Nishimiya (Saori Hayami) começa a estudar em sua turma, ele não é o único a tirar sarro das desventuras da menina surda, a puxar seus aparelhos auditivos e a se irritar com a comunicação atravancada. Contudo, uma virada de mesa o coloca – de certa forma – na posição dela, de pessoa a ser humilhada e maltratada pela turma. Enquanto ela é absolutamente inocente e não entende porque isso acontece, ele sente culpa, remorso e a dor de ter perdido sua antiga posição na hierarquia escolar. São dois sentimentos bem diferentes, mas que trazem um amadurecimento forçado e uma melancolia para ambos.

Já adolescente, Shoya (Miyu Irino) volta a procurar a antiga colega e – devidamente acompanhado de um novo amigo, Tomohiro Nagatsuka (Kenshô Ono) –, é forçado a interagir com a irmã mais nova da garota, Yuzuru (Aoi Yûki), e com três antigas companheiras de classe: Miyoko Sahara (Yui Ishikawa), que optou por mudar de colégio em vez de aguentar o ostracismo; Naoka Ueno (Yûki Kaneko), que se manteve no lado ‘vencedor’ às custas de uma antiga amizade; e Miki Kawai (Megumi Han), que sempre evitou encarar as coisas de frente, preocupando-se mais com a aparência que com os sentimentos alheios.

Esse estranho e inconsistente grupo de adolescentes acaba sendo forçado a uma interação que, obviamente, é repleta de atritos e mal-entendidos. Eles, obviamente, estão fadados a uma série de brigas e não é exatamente certeza de que irão conseguir colocar todos os pingos nos ‘is’. Ainda assim, Koe no katachi consegue se manter coerente a seu objetivo – e a seu gênero –, pois sempre acaba se voltando para seu protagonista, que é quem tem a jornada mais complexa e mais repleta de aprendizados.

Dois aspectos da produção me chamam a atenção. Um deles é que o filme não diminui os sentimentos de seus personagens. Todos eles sofrem, cada um a seu modo. Além disso, o suicídio é um tema que surge em dois momentos, com duas abordagens e consequências distintas. Em ambos os casos, as motivações são bem claras e a dor é real. Resumindo, a diretora Naoko Yamada não subestima nem seu público e nem sua história, aproveitando para trabalhar a empatia com primazia em sua obra.

O segundo ponto que eu queria levantar é o imenso despreparo dos ‘responsáveis’ em cuidar desse universo infantojuvenil. A escola é extremamente despreparada tanto para lidar com a menina surda – que não conta com qualquer tipo de intérprete – quanto com os comportamentos violentos da turma. O professor, especificamente, parece ignorar a forma como as crianças se relacionam e as estruturas de poder que existem na sala de aula (em grande parte, ele é o responsável por algumas marcas profundas deixadas em seus alunos). Em meio a tudo isso, mães aparentemente solitárias assumem responsabilidades demais e mal conseguem olhar para além do que acontece embaixo de seus próprios tetos.

Como um filme sobre amadurecimento, Koe no katachi acaba apresentando um dos contextos mais completos que já tive a oportunidade de assistir. Há muitas nuances, trazidas pelos diferentes personagens e suas maneiras de reagir à trama. Ainda que isso faça com que a produção perca o caráter de universalidade que tanto encanta em muitas dessas obras, o fato dela se situar em um momento específico – no tempo, no espaço e na cultura, por assim dizer – garantem que ele tenha seu encanto próprio e o tornam absolutamente único.

RELACIONADOS

0 recados