Divagações: Killer's Kiss
6.1.15
E foi mais ou menos assim que tudo começou. Depois de trabalhar por um bom período como fotógrafo, Stanley Kubrick decidiu que queria fazer cinema. Alguns colegas imaginaram que ser diretor não combinava com sua personalidade, mas ele seguiu em frente, largou tudo, fez alguns curtas-metragens e seu primeiro longa-metragem, Fear and Desire. A produção – rejeitada por seu próprio criador – está disponível em cópias desgastadas e incompletas. Assim, é preciso começar a entender Kubrick por Killer's Kiss, feito dois anos depois.
Único filme com roteiro original do diretor, ele acompanha o encontro de duas pessoas em situações decisórias. Davey Gordon (Jamie Smith) é um boxeador em declínio. Logo que o filme começa, ele perde uma importante luta e começa a questionar seu futuro no esporte. Já Gloria Price (Irene Kane) é uma jovem que não gosta de seu emprego como acompanhante em um clube de dança de solitários, principalmente depois que seu chefe, Vincent Rapallo (Frank Silvera), começa a demonstrar certos favoritismos. Os dois – Davey e Gloria – moram frente a frente em um edifício de Nova York e acabam tendo seus caminhos cruzados, o que traz problemas para ambos os lados.
De cara, o principal problema do filme é o som. Certas características parecem não combinar com o perfeccionismo do diretor, mas a verdade é que o orçamento disponível não permitia a locação de equipamentos para a captação adequada de som durante as filmagens, de modo que todos os diálogos precisaram ser dublados posteriormente. A voz de Irene Kane acabou sendo substituída pela de Peggy Lobbin e algo se perde nessa performance, que já não era primorosa. Além disso, problemas posteriores com a equipe de som provocaram mais inconsistências.
Além disso, é preciso admitir que Killer's Kiss não conta com a trama mais densa que já existiu. Os personagens são rasos e possuem motivações fracas, o que explica a preferência posterior do diretor por trabalhar com adaptações de livros ou contos (e, sempre que possível, com um escritor profissional ao seu lado no roteiro). A voz em off e os constantes flashbacks entregam a necessidade de fazer economias, mas, ainda assim, trata-se de um drama bem construído, com um ritmo calculado e uma estrutura narrativa que prende o espectador.
O apreço técnico surge principalmente na iluminação e nos ângulos de câmera, como era de se esperar, uma vez que Kubrick tinha experiência como fotógrafo. Mesmo com toda a economia da produção, mal se pode dizer que se trata de um cineasta inexperiente filmando sem autorização e com profissionais não sindicalizados. O visual do filme é impecável, o que é incrível quando se sabe que, para manter a discrição, muitas sequências foram filmadas de dentro de um carro, com os atores se misturando aos transeuntes.
Além disso, o diretor se permitiu fazer experimentações com a iluminação nas cenas em ambientes fechados, gerando efeitos bem interessantes, assim como na sequência de um sonho, apresentado em negativo. Destaque também para a cena filmada dentro de um depósito de manequins, que traz um caráter simbólico muito forte, outra característica que o cineasta irá aprimorar ao longo dos anos.
A propósito, vários temas expostos em Killer's Kiss irão se repetir ao longo dos demais filmes do diretor e um já é o resultado do seu desenvolvimento profissional: o boxe. Assunto de um ensaio fotográfico e de um curta-metragem (Day of the Fight), ele chamou a atenção do diretor, que procurou explorar ângulos interessantes e construir uma cena a seu próprio modo.
Assim, de modo geral, a produção apresenta todo o potencial de um excelente cineasta. Lançado quando Kubrick tinha 27 anos, o filme foi um pioneiro no cinema independente dos Estados Unidos, abrindo caminho para uma carreira marcada pela liberdade criativa. Não se trata, é claro, de uma grande obra-prima, mas apresenta um autor.
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