Divagações: BlacKkKlansman
19.11.18
Spike Lee é um diretor com uma agenda, não dá para negar. Em um momento de tensão política extremamente elevada, é até mesmo refrescante ver alguém fazendo cinema sem papas na língua e sem fazer concessões para o grande público.
BlacKkKlansman surge justamente como a resposta para esses tempos: ele não é sutil, seus vilões são até mesmo caricatos e a mensagem que ele passa quer ser a mais clara possível, mostrando o fortalecimento do racismo sistêmico na política norte-americana por meio do crescimento da Ku Klux Klan nos anos 1970. Isso tudo sem deixar de ser um filme policial pipoca surpreendentemente divertido.
Baseado (não muito fielmente, diga-se de passagem) em uma história real, o longa acompanha a carreira de Ron Stallworth (John David Washington), um jovem policial negro do Colorado que acaba se infiltrando no grupo local da Ku Klux Klan durante uma investigação. Com ajuda de outro agente, Flip Zimmerman (Adam Driver), Ron vai galgando posições dentro da organização e descobrindo alguns planos bastante perigosos envolvendo a líder estudantil e ativista Patrice Dumas (Laura Harrier), que acaba se envolvendo com Ron.
Com fotografia, edição e direção até que bastante provocativas, além de várias referências visuais e técnicas a outras obras do cinema, BlacKkKlansman é um dos bons momentos da carreira cheia de altos e baixos de Spike Lee – digo, pelo menos no que o toca como diretor. Por meio de um trabalho excepcional e muito bem pensado de câmera, ele consegue transmitir a ideia da identidade e da vivência negra como ponto central e focal do filme, ao mesmo tempo em que satiriza e critica alguns arquétipos do blaxploitation, pintando um retrato bem mais complexo do cinema negro do que eu poderia sequer esperar.
É claro que o filme também tem problemas, sobretudo com o texto meio engessado (porém com alguns momentos de brilhantismo) e personagens não lá muito profundos. Porém, quando ele encasqueta de expor alguma ideia ou trabalhar em seu conteúdo político, geralmente o faz de modo bem inventivo e até mesmo didático.
A comédia, por sua vez, é presente, ainda que um pouco inconstante, de modo que o filme dá muito menos destaque a ela do que dava a entender de início. BlacKkKlansman é uma obra descontraída, mas seus temas são tratados com seriedade e nunca existe muito espaço para o humor, que aparece muito mais como farsa ou em seu absurdo do que em tentativas premeditadas de fazer piada.
Felizmente, tanto John David Washington quanto Adam Driver conseguem transitar por estes tons. O primeiro segura bem a inexperiência e sai um pouco da sombra do pai (o bem mais famoso Denzel Washington), enquanto o segundo, mesmo sem tanto tempo de tela, mostrou-se bem mais versátil do que eu esperava, passando por entre algumas discussões bem instigantes sobre o descobrimento de uma identidade e da conexão de uma pessoa com suas origens. Ainda que na vida real Flip não tenha sido um judeu, a decisão de falar sobre estas questões com esse personagem foi bastante acertada.
E não dá para deixar de evitar de falar do tom político do filme, que está por toda parte. Talvez nosso distanciamento da realidade norte-americana nos torne mais isentos para ver seus méritos e defeitos, pois, sem dúvidas, o assunto acende algumas paixões entre os americanos – não deveria, afinal de contas, estamos falando de grupos violentos que pregam discursos de ódio. Mas, estranhamente, estamos em uma época em que os simpatizantes dessas ideias se sentem empoderados para falar a plenos pulmões o quanto o filme de Lee é uma “propaganda esquerdista”, alinhando-se com figuras que acham justificável promover uma perseguição étnica através da violência. Vá entender!
De qualquer modo, BlacKkKlansman não é nem um pouco sutil sobre seus posicionamentos. O filme até tenta fazer uns paralelos não tão diretos sobre a situação política dos Estados Unidos de hoje com a época em que ele se passa, mas resolve deixar a elegância de lado em seu final para falar sobre Charlottesville. A produção é até mesmo dedicada a uma das vítimas da violência perpetrada por grupos de extrema direita.
Assim, o filme é claramente anti-Trump, inclusive retomando a trajetória de um dos seus personagens, o líder da Klan, David Duke (no filme interpretado por Topher Grace) em suas manifestações de apoio ao presidente estadunidense nos dias atuais. Essa é, provavelmente, a parte mais polarizante do filme, sendo, ao mesmo tempo, um momento muito poderoso e algo que empobrece todo o trabalho narrativo do filme, soando como uma muleta do diretor para deixar seu ponto bem claro.
Não posso dizer que BlacKkKlansman é um filme capaz de agradar a todo mundo, nem mesmo entre aqueles que não se incomodam com seus vieses políticos. O longa-metragem tem suas inconstâncias, é arrastado de vez em quando e se perde um pouco na narrativa, eventualmente querendo ser algo bem maior ou mais complexo do que acabou sendo. Mesmo assim, acho que o filme tem o seu valor e é algo que vale a pena se ver – se você estiver disposto a se esforçar para extrair algo dele.
Texto: Vinicius Ricardo Tomal
Edição: Renata Bossle
BlacKkKlansman surge justamente como a resposta para esses tempos: ele não é sutil, seus vilões são até mesmo caricatos e a mensagem que ele passa quer ser a mais clara possível, mostrando o fortalecimento do racismo sistêmico na política norte-americana por meio do crescimento da Ku Klux Klan nos anos 1970. Isso tudo sem deixar de ser um filme policial pipoca surpreendentemente divertido.
Baseado (não muito fielmente, diga-se de passagem) em uma história real, o longa acompanha a carreira de Ron Stallworth (John David Washington), um jovem policial negro do Colorado que acaba se infiltrando no grupo local da Ku Klux Klan durante uma investigação. Com ajuda de outro agente, Flip Zimmerman (Adam Driver), Ron vai galgando posições dentro da organização e descobrindo alguns planos bastante perigosos envolvendo a líder estudantil e ativista Patrice Dumas (Laura Harrier), que acaba se envolvendo com Ron.
Com fotografia, edição e direção até que bastante provocativas, além de várias referências visuais e técnicas a outras obras do cinema, BlacKkKlansman é um dos bons momentos da carreira cheia de altos e baixos de Spike Lee – digo, pelo menos no que o toca como diretor. Por meio de um trabalho excepcional e muito bem pensado de câmera, ele consegue transmitir a ideia da identidade e da vivência negra como ponto central e focal do filme, ao mesmo tempo em que satiriza e critica alguns arquétipos do blaxploitation, pintando um retrato bem mais complexo do cinema negro do que eu poderia sequer esperar.
É claro que o filme também tem problemas, sobretudo com o texto meio engessado (porém com alguns momentos de brilhantismo) e personagens não lá muito profundos. Porém, quando ele encasqueta de expor alguma ideia ou trabalhar em seu conteúdo político, geralmente o faz de modo bem inventivo e até mesmo didático.
A comédia, por sua vez, é presente, ainda que um pouco inconstante, de modo que o filme dá muito menos destaque a ela do que dava a entender de início. BlacKkKlansman é uma obra descontraída, mas seus temas são tratados com seriedade e nunca existe muito espaço para o humor, que aparece muito mais como farsa ou em seu absurdo do que em tentativas premeditadas de fazer piada.
Felizmente, tanto John David Washington quanto Adam Driver conseguem transitar por estes tons. O primeiro segura bem a inexperiência e sai um pouco da sombra do pai (o bem mais famoso Denzel Washington), enquanto o segundo, mesmo sem tanto tempo de tela, mostrou-se bem mais versátil do que eu esperava, passando por entre algumas discussões bem instigantes sobre o descobrimento de uma identidade e da conexão de uma pessoa com suas origens. Ainda que na vida real Flip não tenha sido um judeu, a decisão de falar sobre estas questões com esse personagem foi bastante acertada.
E não dá para deixar de evitar de falar do tom político do filme, que está por toda parte. Talvez nosso distanciamento da realidade norte-americana nos torne mais isentos para ver seus méritos e defeitos, pois, sem dúvidas, o assunto acende algumas paixões entre os americanos – não deveria, afinal de contas, estamos falando de grupos violentos que pregam discursos de ódio. Mas, estranhamente, estamos em uma época em que os simpatizantes dessas ideias se sentem empoderados para falar a plenos pulmões o quanto o filme de Lee é uma “propaganda esquerdista”, alinhando-se com figuras que acham justificável promover uma perseguição étnica através da violência. Vá entender!
De qualquer modo, BlacKkKlansman não é nem um pouco sutil sobre seus posicionamentos. O filme até tenta fazer uns paralelos não tão diretos sobre a situação política dos Estados Unidos de hoje com a época em que ele se passa, mas resolve deixar a elegância de lado em seu final para falar sobre Charlottesville. A produção é até mesmo dedicada a uma das vítimas da violência perpetrada por grupos de extrema direita.
Assim, o filme é claramente anti-Trump, inclusive retomando a trajetória de um dos seus personagens, o líder da Klan, David Duke (no filme interpretado por Topher Grace) em suas manifestações de apoio ao presidente estadunidense nos dias atuais. Essa é, provavelmente, a parte mais polarizante do filme, sendo, ao mesmo tempo, um momento muito poderoso e algo que empobrece todo o trabalho narrativo do filme, soando como uma muleta do diretor para deixar seu ponto bem claro.
Não posso dizer que BlacKkKlansman é um filme capaz de agradar a todo mundo, nem mesmo entre aqueles que não se incomodam com seus vieses políticos. O longa-metragem tem suas inconstâncias, é arrastado de vez em quando e se perde um pouco na narrativa, eventualmente querendo ser algo bem maior ou mais complexo do que acabou sendo. Mesmo assim, acho que o filme tem o seu valor e é algo que vale a pena se ver – se você estiver disposto a se esforçar para extrair algo dele.
Texto: Vinicius Ricardo Tomal
Edição: Renata Bossle
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