Divagações: O Doutrinador
1.11.18
O Doutrinador é um daqueles filmes que, se fosse lançado por um grande estúdio americano, acabaria enterrado em meio a enxurrada de adaptações medíocres de quadrinhos que ninguém leu. Porém, o negócio é que a sua brasilidade o torna algo no mínimo curioso – e admito que isso foi o bastante para me levar ao cinema para conferir se Gustavo Bonafé e Fábio Mendonça conseguiram tornar interessante a velha história de um homem desequilibrado que se torna um vigilante em busca de vingança.
Antes que me perguntem: eles não conseguem. O filme está tão cheio de clichês e tropos do gênero que chego a me questionar se a produção não funcionaria melhor como uma autoparódia do que como uma história que se leva a sério – ainda mais porque ela se propõe a fazer uma espécie desastrada de comentário político sobre o Brasil e o nosso problema endêmico de corrupção. Inclusive, foi por essa razão que o filme foi adiado para depois das eleições, de modo a não soar oportunista e de mau gosto (em vista dos resultados, porém, ele soa um pouco como essas duas coisas).
Na melhor tradição dos anti-heróis dos quadrinhos, Miguel (Kiko Pissolato) é um agente de elite de um batalhão especial que presencia em primeira mão os males da corrupção quando sua investigação sobre os crimes do governador Sandro Correa (Eduardo Moscovis) acaba arquivada por conta de interferência política. Descrente no sistema e vítima de uma tragédia pessoal que o empurra para a ação, Miguel acaba assumindo a máscara do Doutrinador, um vigilante cujo único propósito é “acabar com isso daí”, de preferência matando algumas figuras políticas de grande destaque da forma mais violenta. Para isso, ele tem a ajuda muito reticente da hacker Nina (Tainá Medina), que se envolve em toda a confusão depois de presenciar a ação do vigilante.
Como filme de ação, O Doutrinador não perde em nada para suas contrapartes internacionais. Realmente, tenho que admitir que ele tem uma das melhores coreografias de ação que vi no cinema brasileiro. São boas lutas, bons tiroteios, um ritmo interessante, algumas sequências genuinamente impressionantes e, tirando um ou outro efeito especial de baixo orçamento que salta aos olhos, não tenho muito o que reclamar nesse sentido.
Porém, o roteiro é canastro e risível, importando as piores partes do gênero, com diálogos que eram para ser sérios, mas soam tão falsos que é impossível não se espantar. Os vilões são maquiavélicos e unidimensionais e o pior é que não existe, basicamente, nenhum antagonismo direto; quase não há resistência e ninguém que esteja exatamente a sua altura. Isso torna as coisas menos interessantes no geral, fazendo com que tudo soe apenas como uma fantasia escapista onde é justificado ser o juiz e o executor daqueles que você considera irremediavelmente corruptos.
Neste ponto está, justamente, o maior problema do filme: sua indecisão na hora de fazer seu comentário político é tanta que ele acaba arriscando desagradar a maioria. De um lado temos no Doutrinador uma figura que cristaliza a revolta popular e a descrença com as instituições (tanto é que, nas HQs originais de Luciano Cunha, muitas vezes a história era só um pretexto para vermos a morte de um sósia de uma figura política famosa) e, de outro lado, temos a complicada tarefa de contar essa história sem romantizar ou justificar os atos do protagonista como justos.
Com um dilema similar, a recente série The Punisher traz uma figura famosa que claramente serve de inspiração para o Doutrinador e, nela, há esse cuidado de retratar Frank Castle como um homem perturbado e com um senso moral distorcido pela vingança. Aqui, entretanto, o negócio é mais complicado e temos só uma cena ou duas que tentam mostrar a queda de Miguel, porém, não há o estofo e o peso emocional necessário para retratá-lo como alguém que não se deve admirar.
As ações do protagonista são repudiadas e, dentro daquele universo, nunca comemoradas ou até mesmo publicamente reconhecidas – o filme até mesmo se encerra com um monólogo sobre a futilidade das suas ações dentro de um sistema muito maior do que ele e, ainda assim, seu subtexto é claro e escancarado. Para ele, o uso da violência é justificável e desejável contra algumas pessoas, mas onde se traça essa linha? Quem deve decidir quem deve morrer ou viver? Neste ponto, o filme se acovarda e se cala, com sua tentativa de ficar em cima do muro soando irremediavelmente hipócrita e até mesmo perigosa.
Não sei se a já anunciada série do Doutrinador (a qual esse filme serve de prequela) vai conseguir sanar essas questões ou mesmo se vai tomar algum tempo para desenvolver as implicações que a atuação do personagem tem no mundo a sua volta. A princípio, isso não me parece lá muito provável já que, no longa-metragem, em momento algum vemos o outro lado da situação. Entendo que a intenção talvez fosse encaixar esse cinismo e essa revolta tipicamente brasileiros no modelo dos filmes de heróis que tanto fazem sucesso, mas – ainda que seja competente em traduzir essa linguagem e esse modelo para cá – o filme nunca tem a coragem de ultrapassar a barreira do lugar comum e dos chavões. Faltou a O Doutrinador apresentar algo de verdadeiramente provocativo ou impressionante, o que é um grande desperdício de suas qualidades.
Texto: Vinicius Ricardo Tomal
Edição: Renata Bossle
Antes que me perguntem: eles não conseguem. O filme está tão cheio de clichês e tropos do gênero que chego a me questionar se a produção não funcionaria melhor como uma autoparódia do que como uma história que se leva a sério – ainda mais porque ela se propõe a fazer uma espécie desastrada de comentário político sobre o Brasil e o nosso problema endêmico de corrupção. Inclusive, foi por essa razão que o filme foi adiado para depois das eleições, de modo a não soar oportunista e de mau gosto (em vista dos resultados, porém, ele soa um pouco como essas duas coisas).
Na melhor tradição dos anti-heróis dos quadrinhos, Miguel (Kiko Pissolato) é um agente de elite de um batalhão especial que presencia em primeira mão os males da corrupção quando sua investigação sobre os crimes do governador Sandro Correa (Eduardo Moscovis) acaba arquivada por conta de interferência política. Descrente no sistema e vítima de uma tragédia pessoal que o empurra para a ação, Miguel acaba assumindo a máscara do Doutrinador, um vigilante cujo único propósito é “acabar com isso daí”, de preferência matando algumas figuras políticas de grande destaque da forma mais violenta. Para isso, ele tem a ajuda muito reticente da hacker Nina (Tainá Medina), que se envolve em toda a confusão depois de presenciar a ação do vigilante.
Como filme de ação, O Doutrinador não perde em nada para suas contrapartes internacionais. Realmente, tenho que admitir que ele tem uma das melhores coreografias de ação que vi no cinema brasileiro. São boas lutas, bons tiroteios, um ritmo interessante, algumas sequências genuinamente impressionantes e, tirando um ou outro efeito especial de baixo orçamento que salta aos olhos, não tenho muito o que reclamar nesse sentido.
Porém, o roteiro é canastro e risível, importando as piores partes do gênero, com diálogos que eram para ser sérios, mas soam tão falsos que é impossível não se espantar. Os vilões são maquiavélicos e unidimensionais e o pior é que não existe, basicamente, nenhum antagonismo direto; quase não há resistência e ninguém que esteja exatamente a sua altura. Isso torna as coisas menos interessantes no geral, fazendo com que tudo soe apenas como uma fantasia escapista onde é justificado ser o juiz e o executor daqueles que você considera irremediavelmente corruptos.
Neste ponto está, justamente, o maior problema do filme: sua indecisão na hora de fazer seu comentário político é tanta que ele acaba arriscando desagradar a maioria. De um lado temos no Doutrinador uma figura que cristaliza a revolta popular e a descrença com as instituições (tanto é que, nas HQs originais de Luciano Cunha, muitas vezes a história era só um pretexto para vermos a morte de um sósia de uma figura política famosa) e, de outro lado, temos a complicada tarefa de contar essa história sem romantizar ou justificar os atos do protagonista como justos.
Com um dilema similar, a recente série The Punisher traz uma figura famosa que claramente serve de inspiração para o Doutrinador e, nela, há esse cuidado de retratar Frank Castle como um homem perturbado e com um senso moral distorcido pela vingança. Aqui, entretanto, o negócio é mais complicado e temos só uma cena ou duas que tentam mostrar a queda de Miguel, porém, não há o estofo e o peso emocional necessário para retratá-lo como alguém que não se deve admirar.
As ações do protagonista são repudiadas e, dentro daquele universo, nunca comemoradas ou até mesmo publicamente reconhecidas – o filme até mesmo se encerra com um monólogo sobre a futilidade das suas ações dentro de um sistema muito maior do que ele e, ainda assim, seu subtexto é claro e escancarado. Para ele, o uso da violência é justificável e desejável contra algumas pessoas, mas onde se traça essa linha? Quem deve decidir quem deve morrer ou viver? Neste ponto, o filme se acovarda e se cala, com sua tentativa de ficar em cima do muro soando irremediavelmente hipócrita e até mesmo perigosa.
Não sei se a já anunciada série do Doutrinador (a qual esse filme serve de prequela) vai conseguir sanar essas questões ou mesmo se vai tomar algum tempo para desenvolver as implicações que a atuação do personagem tem no mundo a sua volta. A princípio, isso não me parece lá muito provável já que, no longa-metragem, em momento algum vemos o outro lado da situação. Entendo que a intenção talvez fosse encaixar esse cinismo e essa revolta tipicamente brasileiros no modelo dos filmes de heróis que tanto fazem sucesso, mas – ainda que seja competente em traduzir essa linguagem e esse modelo para cá – o filme nunca tem a coragem de ultrapassar a barreira do lugar comum e dos chavões. Faltou a O Doutrinador apresentar algo de verdadeiramente provocativo ou impressionante, o que é um grande desperdício de suas qualidades.
Texto: Vinicius Ricardo Tomal
Edição: Renata Bossle
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