Divagações: Roma
14.2.19
A tanto tempo relegada a um papel coadjuvante – ou meramente figurante – nos grandes dramas do cinema, a empregada doméstica começou a ser olhada com outros olhos por uma nova geração de cineastas, especialmente na América Latina, marcada por seus fortes contrastes sociais. No Brasil, por exemplo, já tivemos o excelente Que Horas Ela Volta?, lançado em 2015.
Mais do que uma “moda”, a escolha dessa figura como protagonista enfatiza uma mudança, uma nova forma de encarar o mundo. Aos poucos, as babás e empregadas domésticas deixaram de fazer parte da vida da classe média – ela própria, redefinida pelos novos tempos. Embora muitos tenham alegado que “ela praticamente faz parte da família”, deve se dar ênfase na palavra “praticamente”, algo que esses retratos de um tempo que não volta mais estão se esforçando em esclarecer.
Roma, por exemplo, é fortemente baseado nas lembranças de Alfonso Cuarón, que escreveu, dirigiu, fotografou, editou e produziu o longa-metragem. O filme também é dedicado a Liboria Rodríguez, que ainda faz parte da família do cineasta. Com isso em mente, a estética em preto e branco não surpreende, dando à produção um aspecto nostálgico e focado no mundo interior dos personagens, sem a distração das cores. A maior parte das sequências é longa, dando tempo ao tempo, e fugindo do ritmo frenético dos blockbusters. É uma mudança de ritmo um pouco incômoda, mas acalentadora.
A história é um recorte da vida de Cleo (Yalitza Aparicio). No México, durante os conturbados anos 1970, ela trabalha na casa de uma família com três filhos. Muito apegada às crianças, ela é bastante discreta em relação às conversas que houve e sempre trabalha em silêncio, quebrado apenas por um radinho. Quando está de folga, ela gosta de passear com sua colega de trabalho (Nancy García García) e com o namorado, Fermín (Jorge Antonio Guerrero), mas uma gravidez inesperada acaba abalando o relacionamento.
Assim, enquanto Cleo precisa lidar com o drama de sua própria vida, ela também acompanha os acontecimentos da casa. O mais marcante deles é o fato de que sua patroa, Sofía (Marina de Tavira), está tentando manter uma aparente normalidade em meio à ausência do marido (Fernando Grediaga).
A relação entre essas duas mulheres, a maneira como elas lidam com suas situações particulares e a ressonância entre as duas histórias é um dos pontos mais interessantes de Roma. Ambas possuem trajetórias difíceis, fazem suas próprias escolhas e precisam lidar com o que se segue, navegando por um mundo onde as atitudes dos homens parecem livres de quaisquer consequências (segundo o diretor, o filme é um tributo às mulheres de sua vida). Com isso, as mudanças no comportamento de Sofía ganham em dimensão, ampliando a própria personagem.
Roma ainda ganha uma dimensão especial pela forma como foi realizado. Em busca de reações naturais, Cuarón optou por não revelar o roteiro a seu elenco, trabalhando a evolução da história um dia por vez e até mesmo dando instruções contraditórias para os atores. Com isso, o filme ganha em sutileza, nunca assumindo o tom melodramático que uma história como essa poderia ter. Cleo, por exemplo, poderia somar todos os acontecimentos para um grande desabafo final, mas seu momento catártico é quase inaudível, tão discreto e simultaneamente poderoso quanto ela mesma.
Só é uma pena que, nos dias de hoje, uma obra tão bonita e delicada como essa tenha pouco espaço nas salas de cinema. Roma foi feito para que suas personagens tenham uma dimensão (literalmente) maior e de uma forma que sua fotografia em preto e branco revele detalhes que passariam despercebidos em outro contexto. Ainda assim, foi na Netflix que o longa-metragem encontrou sua casa e chegou até a minha.
É um pouco triste que o mundo tenha que mudar, mas é bom que isso aconteça.
Outras divagações:
A Little Princess
Harry Potter and the Prisoner of Azkaban
Children of Men
Gravity
Mais do que uma “moda”, a escolha dessa figura como protagonista enfatiza uma mudança, uma nova forma de encarar o mundo. Aos poucos, as babás e empregadas domésticas deixaram de fazer parte da vida da classe média – ela própria, redefinida pelos novos tempos. Embora muitos tenham alegado que “ela praticamente faz parte da família”, deve se dar ênfase na palavra “praticamente”, algo que esses retratos de um tempo que não volta mais estão se esforçando em esclarecer.
Roma, por exemplo, é fortemente baseado nas lembranças de Alfonso Cuarón, que escreveu, dirigiu, fotografou, editou e produziu o longa-metragem. O filme também é dedicado a Liboria Rodríguez, que ainda faz parte da família do cineasta. Com isso em mente, a estética em preto e branco não surpreende, dando à produção um aspecto nostálgico e focado no mundo interior dos personagens, sem a distração das cores. A maior parte das sequências é longa, dando tempo ao tempo, e fugindo do ritmo frenético dos blockbusters. É uma mudança de ritmo um pouco incômoda, mas acalentadora.
A história é um recorte da vida de Cleo (Yalitza Aparicio). No México, durante os conturbados anos 1970, ela trabalha na casa de uma família com três filhos. Muito apegada às crianças, ela é bastante discreta em relação às conversas que houve e sempre trabalha em silêncio, quebrado apenas por um radinho. Quando está de folga, ela gosta de passear com sua colega de trabalho (Nancy García García) e com o namorado, Fermín (Jorge Antonio Guerrero), mas uma gravidez inesperada acaba abalando o relacionamento.
Assim, enquanto Cleo precisa lidar com o drama de sua própria vida, ela também acompanha os acontecimentos da casa. O mais marcante deles é o fato de que sua patroa, Sofía (Marina de Tavira), está tentando manter uma aparente normalidade em meio à ausência do marido (Fernando Grediaga).
A relação entre essas duas mulheres, a maneira como elas lidam com suas situações particulares e a ressonância entre as duas histórias é um dos pontos mais interessantes de Roma. Ambas possuem trajetórias difíceis, fazem suas próprias escolhas e precisam lidar com o que se segue, navegando por um mundo onde as atitudes dos homens parecem livres de quaisquer consequências (segundo o diretor, o filme é um tributo às mulheres de sua vida). Com isso, as mudanças no comportamento de Sofía ganham em dimensão, ampliando a própria personagem.
Roma ainda ganha uma dimensão especial pela forma como foi realizado. Em busca de reações naturais, Cuarón optou por não revelar o roteiro a seu elenco, trabalhando a evolução da história um dia por vez e até mesmo dando instruções contraditórias para os atores. Com isso, o filme ganha em sutileza, nunca assumindo o tom melodramático que uma história como essa poderia ter. Cleo, por exemplo, poderia somar todos os acontecimentos para um grande desabafo final, mas seu momento catártico é quase inaudível, tão discreto e simultaneamente poderoso quanto ela mesma.
Só é uma pena que, nos dias de hoje, uma obra tão bonita e delicada como essa tenha pouco espaço nas salas de cinema. Roma foi feito para que suas personagens tenham uma dimensão (literalmente) maior e de uma forma que sua fotografia em preto e branco revele detalhes que passariam despercebidos em outro contexto. Ainda assim, foi na Netflix que o longa-metragem encontrou sua casa e chegou até a minha.
É um pouco triste que o mundo tenha que mudar, mas é bom que isso aconteça.
Outras divagações:
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