Divagações: Civil War

Existem filmes tão contaminados pelo discurso ao seu redor que se torna difícil falar sobre eles sem considerar o que é dito a respeito da o...

Civil War
Existem filmes tão contaminados pelo discurso ao seu redor que se torna difícil falar sobre eles sem considerar o que é dito a respeito da obra. Civil War é um claro exemplo disso – e não se trata apenas de uma infeliz coincidência. Todo o marketing do filme se esforçou para instilar esse senso de grandiloquência política e instigar os espectadores a pensar nesse estranho mundo paralelo onde Texas e Califórnia se uniram em um movimento insurgente contra o governo americano.

Funcionou? Sem dúvidas, essa foi uma jogada que, em um ano de eleição e de ânimos já exaltados, parece ter dominado a conversa a respeito do filme. Mas, ao centralizar o debate em torno deste ponto, o filme se colocou como um destinatário de um escrutínio mais minucioso por parte dos seus espectadores, que esperavam que um filme da A24 com toda essa pompa teria muito a dizer. É justamente quando ele não tem que surgem os problemas.

Mesmo afastados desta carga histórica em terras brasileiras, não ficamos imunes a questões do gênero. Por mais que o filme tenha falhado em causar o mesmo rebuliço por aqui – provavelmente, o maior destaque é a presença proeminente de Wagner Moura –, eu ainda esperava por “algo”, um comentário sobre a divisão política e os arranjos sócio-históricos da sociedade norte-americana e sobre como essa divisão, conforme os pôsteres apontam, faz impérios ruírem.

O que eu encontrei foi algo decididamente diferente. Para começar, a trama se passa em um presente alternativo em que uma guerra civil divide os estadunidenses, mas não há explicações concretas sobre como isso aconteceu, ou seja, é preciso apenas aceitar que essa é a situação.

Nesse contexto, uma dupla de jornalistas – a fotografa Lee (Kirsten Dunst) e Joel (Wagner Moura) – parte em direção a Washington com o objetivo de documentar os últimos dias do conflito e, quem sabe, conseguir uma entrevista com o presidente do que restou do país (Nick Offerman). Nessa viagem pelo interior americano tomado pela guerra, eles se juntam a um jornalista veterano, Sammy (Stephen McKinley Henderson), e a uma jovem que idolatra o trabalho de Lee, Jessie, (Cailee Spaeny).

Ou seja, fundamentalmente, Civil War não é sobre a dita guerra civil; as razões do conflito são opacas, o seu desenvolvimento é pouco explorado e até mesmo o que vai acontecer depois que a guerra acabar é uma incógnita. Mas o filme explora o jornalismo de guerra e, especialmente, os jornalistas que participam destes processos. Sob esta ótica, Civil War é bastante sólido, com um grupo central de protagonistas interessante e que exemplifica bem o tipo de convicção ou ambição que você deve ter para colocar sua vida em risco. “É uma questão existencial”, diria um dos personagens.

O conceito é bem vendido pelos atores. Kirsten Dunst é uma protagonista sólida, que tem seus momentos, e cria uma boa dinâmica com a personagem de Cailee Spaeny, embora pudesse ter se beneficiado de um pouco mais de desenvolvimento. Isso vale apenas parcialmente para Wagner Moura, que convence com sua obsessão e seu jeito impulsivo, mas que poderia ter um pouco mais de gravitas em suas razões para ir a tantos extremos.

A falta de um fio condutor e esse clima de road trip lento podem afastar a parcela do público que espera por um foco maior na tal guerra. Ainda assim, a maneira como o conflito é retratado me satisfez, mostrando essa influência pervasiva no tecido social que alcança até mesmo quem propositalmente não quer tomar lados. Ao invés de ter grandes momentos de violência e combates, o filme traz as consequências da guerra e o efeito desumanizante que ela tem sobre nós.

Vale observar que isso tudo é acompanhado de um trabalho de direção e de som que são ótimos em colocar o espectador dentro do que está acontecendo. Isso é válido especialmente conforme o filme vai chegando ao seu fim (em um momento mais apoteótico, diga-se de passagem).

Mas permanece o elefante na sala: Civil War não é sobre política e, inclusive, evita falar de política a todo o custo. Talvez o propósito seja não alienar parte do público em um momento de clima carregado nos Estados Unidos, mas o diretor e roteirista Alex Garland, ao fazer isso, não apenas retira uma importante dimensão que dá peso a esse tipo de trama, mas abre margem para interpretações completamente equivocadas do material.

Para mim, a covardia em endereçar problemas muito reais e existentes no país também é um desserviço a própria profissão jornalística, que é ao mesmo tempo glamorizada e reduzida em suas motivações. Com isso, a produção parece esquecer que se trata de um ofício politicamente carregado e de quanto isso orienta o processo de cobertura.

Obviamente, eu não queria que todo esse aspecto do filme fosse mastigado, que ele tomasse um lado e/ou que desse nome aos bois – mas não é possível ter o bolo e o comer. Se Garland quisesse dar profundidade ao filme e a seus personagens, esse aspecto era inevitável; sem isso, a trama fica um pouco manca, eximindo-se de fazer qualquer comentário mais relevante que eleve o resultado de algum modo. Civil War é um filme competente e relevante, mas que vai ser mais lembrado pelo que deixou de fazer do que pelo que efetivamente fez.

Outras divagações:
Ex Machina

Texto: Vinicius Ricardo Tomal
Edição: Renata Bossle

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