Divagações: Cider no yô ni kotoba ga wakiagaru

Se você me conhece (ou lê meus textos há algum tempo), é provável que já tenha notado que eu posso até ser relativamente jovem, mas sempre t...

Cider no yô ni kotoba ga wakiagaru
Se você me conhece (ou lê meus textos há algum tempo), é provável que já tenha notado que eu posso até ser relativamente jovem, mas sempre tive um lado meio “idoso”. Tenho muitas manias, uma teimosia cega, uma séria dificuldade com alongamentos e muita preguiça de sair de casa (embora o isolamento social trazido pela pandemia tenha me deixado com vontade de sair de vez em quando). Além disso, já fiz voluntariado em um asilo feminino e acredito que tinha uma boa relação com todas as moradoras do lugar.

Fiz todo esse rodeio para dizer que eu me identifico bastante com o protagonista de Cider no yô ni kotoba ga wakiagaru. Cherry (Somegorô Ichikawa) é um menino tímido, que adora escrever haicais e trabalha em uma espécie de creche para idosos, que fica em um movimentado shopping. Enquanto não está trabalhando ou escrevendo, ele passa o tempo com seus amigos ou arrumando as coisas em seu quarto, contando os dias para uma mudança de cidade que deve acontecer em breve.

Por um acidente típico de filmes, o caminho de Cherry acaba se cruzando com o de Smile (Hana Sugisaki), uma menina que é uma espécie de influencer digital, mas que parou de sorrir quando a adolescência a fez ficar consciente de sua característica física mais marcante: os dentes proeminentes da frente, no melhor estilo Mônica. E, juntos, os dois assumem uma espécie de missão: ajudar um dos idosos do lugar, Fujiyama (Kôichi Yamadera), a ouvir novamente seu disco favorito, cuja única cópia restante está desaparecida.

De maneira geral, Cider no yô ni kotoba ga wakiagaru não se preocupa muito com ser plausível quanto aos acontecimentos da trama, que vão se encaixando muito bem à medida que a história caminha em uma direção bastante óbvia. Ao mesmo tempo, a realidade pode ser tão absurda ou repleta de coincidências que isso não chega a incomodar, não dessa vez. Afinal, mais importante do que o que está efetivamente acontecendo na tela é o que aquilo realmente quer dizer.

Ao explorar os motivos pelos quais um homem idoso ficou obcecado por um disco de vinil, os dois protagonistas descobrem algo mais profundo do que um velho cheio de maneirismos. Além disso, em meio a esta interação crescente, eles precisam lidar com novos sentimentos e toda a insegurança derivada disso. Ele é muito tímido, mas joga sua expressividade nos poemas (e tem o agravante de que irá se mudar em breve). Ela está muito consciente de si mesma e de sua aparência, tendo dificuldade de perceber o que acontece ao seu redor.

Com isso, esta história dirigida por Kyohei Ishiguro e escrita por Dai Satô é o típico romance do começo de adolescência, aquele que muitos de nós gostaríamos de ter vivido. O momento bastante específico da vida dos personagens é respeitado (tecnicamente, eles têm entre 16 e 17 anos, mas parecem até mais novos que isso) e o mundo parece ressoar a energia que eles têm dentro de si, por mais que eles tenham certa dificuldade em expressá-la.

Visualmente, tudo em Cider no yô ni kotoba ga wakiagaru é muito colorido, vibrante e até exagerado, ao mesmo tempo que traz cenários estranhamente realistas – o shopping, inclusive, é muito parecido com um que eu conheço –, também contando sua história por meio da arquitetura e do uso dos espaços. Com isso, a produção consegue transmitir tanto a juventude (ou a distância dela) quanto as alegrias do verão (e seu caráter inevitavelmente passageiro).

Aliás, é por meio desse estranho equilíbrio e do cuidadoso trabalho com dicotomias que a produção se sustenta bem apesar dos clichês. Os protagonistas, por exemplo, não são exatamente opostos, mas são diferentes o bastante para enxergar algo de especial justamente naquilo que o outro está tentando esconder sobre si mesmo. E é isso o que torna a inesperada aproximação dos dois crível.

Tão doce quanto o permitido, Cider no yô ni kotoba ga wakiagaru passa rápido e levemente, aquecendo corações e alegrando velhos espíritos, como o meu, que não se cansam de ver novos amores surgindo.

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