Divagações: Bohemian Rhapsody
31.10.18
Há males que vem para o bem. Talvez essa seja a melhor maneira de sintetizar Bohemian Rhapsody em vista dos quase dez anos de problemas de produção, trocas de elenco e diferenças criativas que jogaram o filme nas mãos de Rami Malek. Das desavenças com Sacha Baron Cohen, que era cotado para o papel principal, até a substituição do diretor Bryan Singer, que, apesar de ainda ser creditado, deu a vez a Dexter Fletcher após sumir no meio as filmagens, havia poucas coisas no filme que pareciam livres de qualquer controvérsia. Ainda assim, no final das contas, a produção consegue atravessar a linha de chegada com resultados até que satisfatórios.
Focado na carreira de Freddie Mercury (Malek) e em sua trajetória no Queen, Bohemian Rhapsody não esconde sua preferência por manter o legado da banda intacto (um dos motivos para controvérsias passadas) ao custo de amenizar um pouco o estilo de vida tresloucado de Mercury. O longa-metragem aborda o convívio com os colegas de banda – Roger Taylor (Ben Hardy), John Deacon (Joseph Mazzello) e Brian May (Gwilym Lee) – e a relação com Mary Austin (Lucy Boynton), que sempre foi considerada o grande amor da vida de Mercury, a despeito da sua sexualidade.
Do início humilde à fama e ao fardo que vem com ela, Bohemian Rhapsody é uma versão diluída e amenizada da coisa real, que talvez soe um pouco autoindulgente ao legado do Queen e a sua importância para a música moderna. O roteiro, assinado por Anthony McCarten e Peter Morgan (dois prolíficos roteiristas de cinebiografias, responsáveis por coisas como The Queen, Frost/Nixon e The Theory of Everything) tem aquele quê de algo tão perfeitamente produzido que soa um pouco artificial.
Por sua vontade de preservar o legado da banda (exigência dos membros remanescentes, diga-se de passagem), o filme joga seguro demais e não mergulha nos aspectos mais humanos do seu protagonista. Você ouve muito mais do que vê, e coisas como a sexualidade latente de Mercury e seus exageros são enterrados na classificação etária PG-13, que ameniza boa parte dos acontecimentos.
O desenvolvimento de personagem acaba também prejudicado nesse sentido, apelando para o óbvio e forçando alguns acontecimentos a se encaixar na linha do tempo pretendida pela narrativa. Mercury, inclusive, é sempre retratado como um gênio assolado pela solidão e pela dificuldade de se conectar com os outros. Mas, como o filme ameniza seus defeitos, fica complicado entender o porquê de todos os abandonarem.
Aliás, Rami Malek entrega uma atuação fascinante. Com um trabalho gestual e de maneirismos, o ator, ao mesmo tempo, encapsula a atitude extravagante de Freddie Mercury e dá humanidade suficiente para que ele não pareça um pastiche, conseguindo incorporar o cantor mesmo sem o porte físico adequado. Infelizmente, Malek não tem nem de longe o alcance vocal de Mercury (são poucos os que tem, sejamos sinceros), forçando o filme a apelar para o famoso playback. Porém, o trabalho de dublagem e mixagem de som é tão competente que é difícil perceber que se trata de uma composição – o mesmo vale para o público de alguns dos grandes shows do filme, recriado a partir de um trabalho de filmagem e pesquisa bastante complexo.
Inclusive, graças a excelente performance do próprio Mercury em sua época, vemos no filme uma recriação resumida – mas ainda assim corajosa – da lendária performance do Queen para o Live Aid em 1985. Durante pouco mais de dez minutos, o filme se dedica completamente a um número musical, sem perder uma gota de energia ou dar a impressão de que aquilo é uma mera lombada no percurso, algo que não se vê por aí com muita frequência. E, ainda que soe muitas vezes como um mero jukebox dos grandes sucessos da banda, esses grandes sucessos são tão bons que é impossível não enxergar nem um pouquinho do mérito disso tudo.
É claro que Bohemian Rhapsody tem falhas óbvias e alguns soluços causados pelos diversos problemas de produção, mas é um filme empolgante e que consegue cativar tanto aqueles que gostam do Queen quanto os que não tem tanta familiaridade com a banda – se ele convence os fãs mais radicais, aí já não sei. Obviamente, o longa-metragem foi feito de olho nas premiações e, certamente, fará diferença na carreira de Rami Malek.
Assim, o filme não deixa de ser entretenimento puro, muito em parte devido ao gênio musical do próprio Queen, cujas canções empolgam até hoje e puxam o filme para cima diversas vezes. A recriação de época é excelente, os atores são muito bons, a história acerta bem na dose de drama, mas tudo é um pouquinho plástico demais e com alma de menos, de modo que a pasteurização hollywoodiana entra em choque com a própria natureza provocativa de Mercury e da banda.
Por mais bem feito e bonito que seja, Bohemian Rhapsody acaba nunca deixando de ser só um simulacro da verdadeira experiência do Queen.
Outras divagações:
X-Men
X2
X-Men: Days of Future Past
X-Men: Apocalypse
Eddie the Eagle
Texto: Vinicius Ricardo Tomal
Edição: Renata Bossle
Focado na carreira de Freddie Mercury (Malek) e em sua trajetória no Queen, Bohemian Rhapsody não esconde sua preferência por manter o legado da banda intacto (um dos motivos para controvérsias passadas) ao custo de amenizar um pouco o estilo de vida tresloucado de Mercury. O longa-metragem aborda o convívio com os colegas de banda – Roger Taylor (Ben Hardy), John Deacon (Joseph Mazzello) e Brian May (Gwilym Lee) – e a relação com Mary Austin (Lucy Boynton), que sempre foi considerada o grande amor da vida de Mercury, a despeito da sua sexualidade.
Do início humilde à fama e ao fardo que vem com ela, Bohemian Rhapsody é uma versão diluída e amenizada da coisa real, que talvez soe um pouco autoindulgente ao legado do Queen e a sua importância para a música moderna. O roteiro, assinado por Anthony McCarten e Peter Morgan (dois prolíficos roteiristas de cinebiografias, responsáveis por coisas como The Queen, Frost/Nixon e The Theory of Everything) tem aquele quê de algo tão perfeitamente produzido que soa um pouco artificial.
Por sua vontade de preservar o legado da banda (exigência dos membros remanescentes, diga-se de passagem), o filme joga seguro demais e não mergulha nos aspectos mais humanos do seu protagonista. Você ouve muito mais do que vê, e coisas como a sexualidade latente de Mercury e seus exageros são enterrados na classificação etária PG-13, que ameniza boa parte dos acontecimentos.
O desenvolvimento de personagem acaba também prejudicado nesse sentido, apelando para o óbvio e forçando alguns acontecimentos a se encaixar na linha do tempo pretendida pela narrativa. Mercury, inclusive, é sempre retratado como um gênio assolado pela solidão e pela dificuldade de se conectar com os outros. Mas, como o filme ameniza seus defeitos, fica complicado entender o porquê de todos os abandonarem.
Aliás, Rami Malek entrega uma atuação fascinante. Com um trabalho gestual e de maneirismos, o ator, ao mesmo tempo, encapsula a atitude extravagante de Freddie Mercury e dá humanidade suficiente para que ele não pareça um pastiche, conseguindo incorporar o cantor mesmo sem o porte físico adequado. Infelizmente, Malek não tem nem de longe o alcance vocal de Mercury (são poucos os que tem, sejamos sinceros), forçando o filme a apelar para o famoso playback. Porém, o trabalho de dublagem e mixagem de som é tão competente que é difícil perceber que se trata de uma composição – o mesmo vale para o público de alguns dos grandes shows do filme, recriado a partir de um trabalho de filmagem e pesquisa bastante complexo.
Inclusive, graças a excelente performance do próprio Mercury em sua época, vemos no filme uma recriação resumida – mas ainda assim corajosa – da lendária performance do Queen para o Live Aid em 1985. Durante pouco mais de dez minutos, o filme se dedica completamente a um número musical, sem perder uma gota de energia ou dar a impressão de que aquilo é uma mera lombada no percurso, algo que não se vê por aí com muita frequência. E, ainda que soe muitas vezes como um mero jukebox dos grandes sucessos da banda, esses grandes sucessos são tão bons que é impossível não enxergar nem um pouquinho do mérito disso tudo.
É claro que Bohemian Rhapsody tem falhas óbvias e alguns soluços causados pelos diversos problemas de produção, mas é um filme empolgante e que consegue cativar tanto aqueles que gostam do Queen quanto os que não tem tanta familiaridade com a banda – se ele convence os fãs mais radicais, aí já não sei. Obviamente, o longa-metragem foi feito de olho nas premiações e, certamente, fará diferença na carreira de Rami Malek.
Assim, o filme não deixa de ser entretenimento puro, muito em parte devido ao gênio musical do próprio Queen, cujas canções empolgam até hoje e puxam o filme para cima diversas vezes. A recriação de época é excelente, os atores são muito bons, a história acerta bem na dose de drama, mas tudo é um pouquinho plástico demais e com alma de menos, de modo que a pasteurização hollywoodiana entra em choque com a própria natureza provocativa de Mercury e da banda.
Por mais bem feito e bonito que seja, Bohemian Rhapsody acaba nunca deixando de ser só um simulacro da verdadeira experiência do Queen.
Outras divagações:
X-Men
X2
X-Men: Days of Future Past
X-Men: Apocalypse
Eddie the Eagle
Texto: Vinicius Ricardo Tomal
Edição: Renata Bossle
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