Divagações: Joker

Demorou um pouco, mas a DC e a Warner finalmente encontraram seu próprio ritmo quando decidiram abandonar a pretensiosa ideia de copiar a ...

Demorou um pouco, mas a DC e a Warner finalmente encontraram seu próprio ritmo quando decidiram abandonar a pretensiosa ideia de copiar a concorrência e abraçaram o que tinham de melhor: personagens absolutamente icônicos. Se Aquaman e Shazam! já apontavam a tendência do estúdio de dar mais liberdade tonal e criativa aos seus diretores e roteiristas, Joker é a consolidação destas decisões. O filme não caminha nem de longe ao lado das outras obras citadas, colocando-se em um patamar diferente de seus colegas de estúdio.

Se Logan havia mostrado que os filmes baseados em quadrinhos de heróis poderiam ser sérios e reflexivos, Joker afirma que eles podem ser arte de primeiríssima qualidade.

Passado em uma Gotham que ecoa fortemente à Nova York da década de 1980 – no auge da sua violência urbana e dos atritos causados pela gentrificação que forçou a população mais pobre para guetos na periferia da cidade –, Joker acompanha a vida miserável de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), um homem com um histórico de problemas mentais. Ele tenta sobreviver fazendo bicos como palhaço enquanto sonha com o estrelato como comediante de stand-up no programa de Murray Franklin (Robert De Niro).

Porém, os negócios não vão bem e Arthur se preocupa mais em cuidar da mãe idosa, Penny (Frances Conroy), do que de si mesmo. Com isso, a degradação da sua saúde – física e mental – vai se agravando, ao mesmo tempo em que a própria cidade de Gotham cai em um espiral de violência e tensão constante.

Mais do que qualquer outra coisa, Joker é um daqueles filmes que se foca completamente no estudo dos seus personagens e na maneira com que suas motivações e crenças se chocam. O resultado destes impactos no mundo ao seu redor torna essa produção a representação mais sociologicamente densa do palhaço do crime. E, para dar ênfase a esta faceta da história, pela primeira vez em décadas (talvez desde os filmes de Tim Burton), Gotham se torna uma personagem tão importante para o filme quanto o seu protagonista: a crueza e a maneira extremamente visceral e meticulosa com que o espaço urbano é representado é o que separa esse filme das versões mais fantasiosas dessa mitologia.

Por sua vez, Arthur Fleck consegue ser, ao mesmo tempo, um personagem simpático ao público e assustador, escondendo por entre as fissuras da sua psique a semente da loucura que inevitavelmente o levará a assumir a persona do já conhecido vilão – e quando esse momento chega, ele chega com força. Nós sabemos desde o início que esse é o destino final da história e que nos resta, como espectadores, apenas presenciar atônitos a queda de Arthur e os motivos que o levam até ela.

Aliás, é graças à performance de Joaquin Phoenix que não há um segundo onde a tensão se dissipe, enchendo o personagem de pathos sem tentar exatamente justificar as suas ações. O grande mérito de Joker é criar uma nova faceta para o personagem, que em nenhum momento remete à performance premiada de Heath Ledger. Ao mesmo tempo, ela é tão memorável quanto e, possivelmente, chega a ser até mesmo superior tecnicamente, estando à beira de sucumbir em frente ao esforço monumental que Phoenix bota no papel.

Dito isso, admito que eu não dava o mínimo crédito para o diretor Todd Phillips, a figura por trás da franquia The Hangover e bem mais conhecido por seus trabalhos cômicos. Mas, ao colocar na tela uma forte influência de Martin Scorsese (o filme compartilha muitas notas com The King of Comedy e Taxi Driver, talvez até demais), Phillips se sai particularmente bem.

Para completar, ele ainda é auxiliado pela trilha sonora da violoncelista Hildur Guðnadóttir – que trabalhou em outros filmes bastante atmosféricos, como Arrival e The Revenant, e que parece ter uma promissora carreira pela frente. A música dá tensão e substância a uma direção seca e pesada, amplificando os momentos de terror existencial e dando crueza e propósito para a violência.

Obviamente, o filme tem seus problemas: e eles estão presentes com muito mais força no seu discurso do que na sua execução. A velha questão de vilanizar personagens portadores de doenças mentais tem sido bastante discutida hoje em dia, mas acho impossível evitar isso em uma figura que talvez seja a representação mais forte da loucura e do caos na cultura pop. Além disso, o filme tenta se afastar de comentários políticos, muito mais textualmente do que qualquer coisa, e ouvimos da própria boca de Arthur que ele não quer fazer nenhuma declaração político.

Porém, a desastrosa entrevista de Joaquin Phoenix para o The Telegraph, onde ele teve de deixar a sala quando confrontado sobre o possível impacto social do filme, demonstra que, tal qual o ator, o filme não parece estar ciente que deixar de manifestar uma opinião política não impede de tornar as suas ações politicamente carregadas. O longa-metragem não faz muito para afastar uma série de interpretações bastante amplas sobre o seu subtexto e que provavelmente serão discutidas a exaustão em um futuro próximo (eu mesmo teria mais a dizer sobre isso).

Mas talvez seja essa a intenção. A falta de tato e de direção em sua mensagem podem ser nada mais do que uma estratégia calculada para gerar a controvérsia necessária para alçar esse filme a um público sedento por discussão. Afinal, não sou tão ingênuo a ponto de achar que, no final do dia, Joker não tenha sido pensado como um produto (convenhamos: ele carrega a marca de uma franquia milionária). Mas também não sou tão cínico para deixar de enxergar os méritos óbvios do filme.

Outras divagações:
Man of Steel
Batman v Superman: Dawn of Justice
Suicide Squad
Wonder Woman
Justice League
Aquaman
Shazam!

Texto: Vinicius Ricardo Tomal
Edição: Renata Bossle

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