Divagações: A Vida Invisível

Por incrível que pareça, o Brasil não escolheu Bacurau para ser seu representante no Oscar 2020. O eleito, na verdade, foi A Vida Invisív...

Por incrível que pareça, o Brasil não escolheu Bacurau para ser seu representante no Oscar 2020. O eleito, na verdade, foi A Vida Invisível, que até teve uma passagem interessante pelos cinemas nacionais, ainda que não tão representativa quanto o outro filme. Eu, inclusive, consegui achar uma sessão mesmo quase dois meses após a estreia – mas já aviso que foi em um cinema com um perfil mais “alternativo”.

De qualquer modo, ainda que a escolha não venha acompanhada de uma aclamação do público, A Vida Invisível tem muitos méritos e merece reconhecimento (digo, além do prêmio recebido no Festival de Cannes). Com direção de Karim Aïnouz, a produção possui uma história intimista e reflexiva, que vai de encontro a toda uma “escola” do cinema nacional. Soa pretensioso e distante? Sim, e é. Mas quem não arrisca, não petisca.

Com uma história que começa nos anos 1950, A Vida Invisível acompanha duas irmãs: Guida (Julia Stockler) e Eurídice (Carol Duarte). A primeira foge de casa no final da adolescência, apaixonada por um marinheiro grego bonitão (Nikolas Antunes). A segunda é a filha perfeita de seus pais conservadores (Flávia Gusmão e António Fonseca) e, antes mesmo de realizar seu sonho de estudar piano em Viena, acaba casada com um homem que mal conhece, Antenor (Gregório Duvivier). Separadas, Guida e Eurídice passam boa parte de suas vidas adultas em busca uma da outra, com consequências para ambas.

Ao seguir a vida dessas duas irmãs em um Rio de Janeiro em transformação, o longa-metragem traz dois universos femininos bastante distantes, mas com muitos paralelos. Guida se divide em dois empregos, frequentemente ouve que deve ser grata por conseguir trabalhar e cria seu filho com dificuldades, enfrentando uma boa dose de preconceito e uma série de limitações por ser mãe solteira. Já Eurídice vira uma dona de casa frustrada, dependente de seu marido e sem espaço para diversões. Sem ter por onde ventilar suas frustrações, ela acaba obcecada pelo sonho de menina e pela busca pela irmã.

Um destaque vai para a forma como ambas encontram uma amiga acolhedora – e sem filhos. No caso de Eurídice, Zélia (Maria Manoella) perde relevância em sua vida à medida em que ela mesma se perde em sua realidade limitada. Já Guida passa a se segurar com força em Filomena (Bárbara Santos), a ponto dela se tornar sua família. Querendo ou não, a figura da companheira leal é essencial para o destino de ambas as personagens, denotando um pouco da importância que a amizade feminina alcançou para a formação da “mulher moderna”.

Em sua narrativa, A Vida Invisível opta por trazer uma reunião de pequenos momentos em vez de uma trama mais sequencial e, com isso, o universo de ambas as protagonistas parece mais amplo do que aquilo que encontramos na tela. Ao mesmo tempo, a câmera insiste em enquadramentos próximos, concentrando a atenção nas duas e evitando que os demais personagens ganhem profundidade. A trilha sonora também ajuda nesta percepção, enfatizando sempre os sentimentos das protagonistas (o que, aliás, deixa o personagem de Duvivier ainda mais incômodo).

E, por mais que a trama se assemelhe a uma novela televisiva, o filme não se rende a saídas fáceis, conseguindo manter a agonia da busca e a curiosidade sobre o destino das personagens ao longo de toda a projeção. Para completar, o Rio de Janeiro é retratado com cuidado, sem uma glamorização da beleza da cidade ou de suas mudanças (e sem lamentações também).

Ah, sim. A Vida Invisível tem uma participação especial de Fernanda Montenegro. Ela está ótima no filme, mas sua aparição é realmente curta. Neste ponto, talvez não seja bom criar muitas expectativas.

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