Divagações: Eternals

Em 1968, Erich von Däniken, imerso no frisson da ufologia em voga na época, lança sua obra mais conhecida: Eram os deuses astronautas?. Com ...

Eternals
Em 1968, Erich von Däniken, imerso no frisson da ufologia em voga na época, lança sua obra mais conhecida: Eram os deuses astronautas?. Com isso, ele cimentou no imaginário popular as teorias conspiratórias de que a mitologia antiga era terreno fértil para a intervenção extraterrestre no nosso planeta. Todo e qualquer fenômeno, construção ou representação inexplicável ou sobre-humana? Provavelmente alienígenas, diria Däniken.

Menos de uma década depois, em 1976, Jack Kirby, pai do Capitão América e parceiro de Stan Lee na era de ouro da Marvel Comics, não estranha as noções rocambolescas da ficção-científica pulp, apropria-se dessa mesma ideia e recicla algumas noções já empregadas anos antes por ele mesmo na DC com Os Novos Deuses. Assim, ele adiciona ao portfólio da Marvel um grupo de heróis que dificilmente atingiria o mesmo nível de prestígio das estrelas da editora, mas que acaba encontrando um nicho na intrincada cosmologia da Casa das Ideias, chegando até mesmo a receber uma repaginada pelas mãos de Neil Gaiman em 2006.

Saltando para os dias atuais, em um cenário onde a Marvel – o estúdio, não a editora – já havia apresentado todas as suas principais franquias nas telas de cinema, não restava muita opção a Kevin Feige e companhia se não escavar nas partes mais afastadas do catálogo da empresa por personagens interessantes para essa nova fase do MCU [sigla em inglês para universo cinematográfico da Marvel]. E, considerando o retorno do Quarteto Fantástico às mãos do estúdio, talvez esta fosse a hora de colocar mais algumas importantes peças do universo cósmico da Marvel em jogo.

Eis que Eternals chega para suprir estas ambições, carregando o pesado desafio de introduzir uma dúzia de novos conceitos e personagens em um só filme, sem destruir completamente o status quo do universo cinematográfico. Mas isso é complicado, uma vez que Eternals faz uma espécie de leve correção no que nos foi apresentado até agora.

O filme apresenta o grupo titular, enviados dos ultrapoderosos Celestiais, uma espécie alienígena primordial que basicamente introduziu a vida inteligente na Terra para proteger o planeta dos Deviantes, criaturas que se espalham pelo universo com o único propósito de bem, acabar com ela. A equipe, composta por Ajak (Salma Hayek), Sersi (Gemma Chan), Ikaris (Richard Madden), Thena (Angelina Jolie), Kingo (Kumail Nanjiani), Sprite (Lia McHugh), Phastos (Brian Tyree Henry), Makkari (Lauren Ridloff), Druig (Barry Keoghan) e Gilgamesh (Ma Dong-seok) veio para nosso planeta sete mil anos atrás e, como no livro de Däniken, moldou a cultura e a história humana.

A princípio sendo considerados pelos nativos como deuses e heróis lendários, eles viveram assim até quinhentos anos atrás. Mas, com a ameaça dos Deviantes exterminada e sob o peso da política de não intervenção imposta pelos Celestiais, que impede o grupo de fazer parte de qualquer conflito humano, a equipe se desfaz e cada um se integra a seu modo a sociedade terrestre. Porém, com o retorno inesperado dos Deviantes, cabe ao grupo se unir novamente e resolver não apenas essa situação como também os seus conflitos internos e suas dúvidas a respeito do seu propósito na Terra.

Como é fácil de perceber, Eternals tem que fazer malabarismos para dar peso e importância para o seu elenco numeroso sem a vantagem da introdução gradual dos seus membros. Assim, é normal se sentir sobrepujado pela torrente de informação e por todas as ambições que o filme carrega – e é igualmente simples ver como essas limitações sufocaram um pouco o potencial criativo do filme. O longa-metragem possivelmente mordeu mais do que consegue engolir ao tentar, ao mesmo tempo, dar espaço aos seus protagonistas, significado aos seus conflitos morais e compreensão dos elementos mais fantásticos da sua trama.

Não tenho dúvida que a diretora Chloé Zhao fez o que podia nesse contexto, mas a sua tradicional sensibilidade e introspecção se perdem em meio à necessidade quase explicita de trazer ação e aventura ao filme, criando uma mistura que é, no mínimo, curiosa e, por vezes, contraditória. A maneira sensível com que ela trata romances e personagens LGBTQ (provavelmente do modo mais direto e enfático que já tivemos no MCU) não torna o filme mais empolgante ou interessante para o público que tradicionalmente vai ao cinema ver filmes de heróis. Além disso, também não ajuda a resolver o inevitável conflito do terceiro ato, que resulta em intermináveis trocas de sopapos – o que mostra que nem mesmo os diretores mais autorais da Marvel conseguem fugir das convenções do gênero.

Com um ritmo mais lento, menos piadas (inclusive com um humor referencial que só poderia ser descrito como forçado), visual esquisito e uma enxurrada de novos personagens, Eternals deve, para muita gente, fazer parte do “baixo clero” dos filmes do MCU. Ao mesmo tempo, eu não ousaria o colocar no mesmo patamar dos títulos mais desprezados, justamente porque, mesmo tropeçando, Eternals ousa e consegue apresentar elementos novos e interessantes ao invés de jogar seguro.

O elenco numeroso é tão bem apresentado quanto o tempo permite, além de ser diverso tanto em aparência quanto em poderes, o que é legal de se ver. Mesmo que as personalidades da equipe se mostrem meio básicas, os integrantes são capazes de interagir uns com os outros de um modo incomum de se ver em um filme de heróis, com diferentes motivações e propósitos se chocando e rearranjando de acordo com o contexto. Nem todos acreditam nas mesmas coisas, e, entre os que acreditam, nem todos concordam com os meios para atingir seus objetivos ou têm as mesmas razões para isso, o que é refrescante no contraste com filmes em que todos estão na mesma página o tempo todo. Mesmo em Captain America: Civil War, o conflito central que divide os heróis soa meio manufaturado e as motivações são simplificadas demais, então, considero que Eternals mostra uma evolução nesse quesito e representa um sinal de maturidade no MCU.

Para os que apreciam a parte mais “quadrinhos” de todas essas histórias, é bacana ver que a Marvel Studios tem arriscado, já que Eternals não é nem um pouco apologético com sua origem cósmica e toda a pseudociência e os exageros que vem com ela. Como alguém com certo contato com os materiais originais, eu me decepcionei um pouco com este lançamento acontecendo antes da “chegada” do Quarteto Fantástico e de X-Men, séries com bons pontos de intersecção com toda a mitologia dos Celestiais e que seriam portas de entrada mais amigáveis para quem não conhece esses recônditos da Marvel. Ainda assim, acredito que o filme fez o suficiente para mover esse universo para frente e, talvez, a Fase 4 do MCU seja interessante para quem gosta de uns conceitos mais exagerados.

Posso dizer que Eternals é um filme excelente? Não, mas ele está longe do que a propaganda negativa faz parecer e talvez funcione bem para quem gostou de Thor sob a direção de Kenneth Branagh (o que não é tanta gente assim, eu sei). Em comum, estes longas-metragens têm um tom mais solene e dramático, com um ritmo um pouco mais lento. Assim, ainda que decididamente Eternals tenha um público, não sei se ele é o mesmo que a Marvel tem cultivado nas últimas décadas, o que não é um prognóstico positivo para o futuro da franquia, mas é algo que só o tempo dirá.

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Texto: Vinicius Ricardo Tomal
Edição: Renata Bossle

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