Divagações: Don't Look Up

Ao mesmo tempo em que os cinemas voltam a chamar atenção com diversos grandes lançamentos, uma produção trazida por uma plataforma de stream...

Don't Look Up
Ao mesmo tempo em que os cinemas voltam a chamar atenção com diversos grandes lançamentos, uma produção trazida por uma plataforma de streaming conseguiu se destacar nas redes sociais. De repente, super-heróis foram para segundo plano (ao menos na minha bolha) e abriram espaço para a sátira política Don't Look Up, deixando claro que não devemos subestimar a força da Netflix.

Com um grande elenco, além de direção e roteiro de Adam McKay, o longa-metragem une diversas temáticas em alta: desrespeito pela ciência, teorias conspiratórias, mídia em busca de audiência, radicalização de pautas, “polarização” política e a própria efemeridade das redes sociais. Tudo com bom humor e bastante exagero (ou não, mas vamos falar disso depois).

Em Don't Look Up, os astrônomos Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) e Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) descobriram um cometa gigantesco que está em rota de colisão com a Terra. Eles seguem o que consideram serem os protocolos adequados – revisão dos dados com colegas, alerta às autoridades competentes (Rob Morgan) etc. – até que esbarram na esfera política, representada pela presidente dos Estados Unidos (Meryl Streep) e por seu filho e assessor (Jonah Hill). Em uma tentativa de forçar uma ação governamental, os pesquisadores “vazam” a informação para a mídia, com consequências variadas. Na sequência, um importante empresário do setor de tecnologia (Mark Rylance) demonstra interesse no cometa.

Neste contexto, é óbvio que a principal “graça” do filme é o quanto as pessoas ignoram um assunto tremendamente importante – pois ainda há tempo para tentar salvar o planeta – e se apegam a coisas como números de audiência, repercussão de memes, preços de ações, lucro ou indicações políticas. Contudo, isso é tão próximo da realidade que fica difícil elevar as coisas para um nível realmente exagerado. É quase como acompanhar as notícias sobre a pandemia de covid-19 (que, veja bem, ainda estamos vivendo) ou sobre as férias do presidente Jair Bolsonaro em Santa Catarina, onde ele passeia com jet-skis da Marinha enquanto a Bahia vive uma emergência climática. A realidade já é tão absurda que a sátira perde fôlego.

Mas há um mérito em trazer tudo isso para uma perspectiva ficcional. No caso de Don't Look Up, a “polarização” política se resume a campanhas tão claras quanto “olhe para cima” e “não olhe para cima”, com esta segunda também funcionando no formato “abaixe a cabeça e siga trabalhando”. O problema é que basta levantar os olhos para enxergar que realmente há um cometa se aproximando, o que acaba sendo um pouco mais difícil na realidade (dê uma olhada nos comentários de pessoas antivacinação em qualquer notícia sobre a terceira dose contra o coronavírus).

Entretanto, também não posso deixar de falar que o filme escorrega em algo que é bastante comum a “blockbusters”: ele esquece que o mundo não se resume aos Estados Unidos. Tudo bem que o cometa vai atingir a costa do Chile e não Nova York e que tanto a ONU quando uma iniciativa internacional são mencionadas, mas nada disso tem relevância real. Obviamente, o filme precisa fazer seu recorte e não dá para trazer todas as consequências de uma notícia como essa em uma história inteligível de menos de duas horas – fora que esse senso de autoimportância funciona no contexto da sátira. Ainda assim, é bastante incômodo para qualquer um de fora dos Estados Unidos.

Outro ponto é que a produção optou por usar atalhos visuais facilmente identificáveis, como o boné da presidente norte-americana. Já o personagem de Mark Rylance surge como uma amálgama de outros empresários-visionários, com referências mais óbvias a Steve Jobs e Elon Musk. Cate Blanchett, por sua vez, interpreta uma âncora de televisão que mistura jornalismo e entretenimento, algo comum em programas matinais estadunidenses, embora sua vida pareça ser bem mais glamourosa, como a de uma celebridade. Ou seja, não podemos acusar o filme de ter ficado em cima do muro.

Mas, com todas essas escolhas em ação, Don't Look Up acaba preso nas teias daquilo que ele mesmo critica – e por sua própria culpa. O vínculo com o imediato, a edição rápida e a profusão de personagens podem tornar seu sucesso efêmero e esquecível (algo que só poderá ser comprovado no futuro). Como a sátira se tornou mais difícil, o humor fácil e às vezes meramente bobo que a produção prega frequentemente não dão conta do recado e servem apenas para uma primeira impressão. Mesmo em meio a boas ideias, este é só mais um produto de Hollywood, feito para gerar repercussão e lucrar.

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