Divagações: Ryû to sobakasu no hime

O interesse pelas obras de Mamoru Hosoda no ocidente nunca atingiu as alturas estratosféricas obtidas por alguns de seus conterrâneos. Mira...

Ryû to sobakasu no hime
O interesse pelas obras de Mamoru Hosoda no ocidente nunca atingiu as alturas estratosféricas obtidas por alguns de seus conterrâneos. Mirai no Mirai, seu filme anterior, até teve certo reconhecimento, mas faltava um sucesso que tornasse seu nome conhecido fora da pequena bolha de fãs de animação japonesa, como foi o caso de Hayao Miyazaki e, em certo grau, Makoto Shinkai.

Ryû to sobakasu no hime se propunha a ser esse filme, sendo uma obra mais adaptada ao gosto ocidental e com uma equipe de produção mais internacional. Pela terceira vez em sua carreira, Hosoda nos leva a uma espécie de metaverso (para usar o termo da moda) internético, mergulhando em uma história que, a despeito de tudo, ainda é sobre a vivência humana e os laços que nos unem.

Em um futuro próximo, onde a tecnologia é capaz de realizar experiências imersivas de realidade virtual, Suzu Naito (Kaho Nakamura) é uma garota do interior japonês que carrega um pesado trauma de infância – a experiência tomou dela, dentre outras coisas, a paixão pela música. Após ser convidada por sua melhor amiga, Hiroka (Lilas Ikuta), a entrar no mundo de U, uma popular rede social/metaverso digital, Suzu cria o alter ego Belle, por meio do qual dá vazão a sua criatividade reprimida.

Inesperadamente, a menina encontra a fama entre os entusiastas do U. Porém, durante um show, Belle acaba se deparando com outra figura conhecida deste universo, Ryu (Takeru Satoh), uma criatura monstruosa e agressiva que é perseguida por uma espécie de cyber-milícia que se propõe a revelar sua real identidade. Sem entender muito bem a razão, Belle acaba envolvida em seu drama.

Ainda que se proponha a ter algo que remeta aos contos de fada – sobretudo A Bela e a Fera –, o filme acaba se mostrando mais fresco e menos comprometido com imitar estes caminhos narrativos já trilhados. A história é menos focada em romance e mais na empatia humana e no senso de comunidade, de modo que as referências acabam servindo mais como pano de fundo e mera estética. Em contrapartida, isso pode acabar incomodando ou confundindo quem esperava por algo mais específico.

De qualquer modo, por mais que a mensagem seja positiva, os personagens sejam interessantes e, no frigir dos ovos, a história funcione, sinto que a insistência de Hosoda de não apenas dirigir, mas também roteirizar seus filmes, acaba enfraquecendo o resultado. Acredito piamente que ele é um diretor muito melhor do que um roteirista, com um olho excelente para storytelling visual e um conhecimento de animação ímpar. Em comparação com os trabalhos em parceria com Satoko Okudera, a roteirista dos seus primeiros filmes, nenhuma de suas obras mais recentes teve a capacidade de me encantar pela força da história. E Ryû to sobakasu no hime não é uma exceção, contendo uma série de decisões narrativas questionáveis e um mundo que não me soa verossímil.

Mas, quanto a parte que toca ao trabalho do estúdio Chizu, fico feliz em ver que ele continua extremamente competente, entregando uma animação fluida e natural, mas sem se descolar do toque visual que Hosoda dá aos movimentos faciais e corporais de seus personagens. A composição e o trabalho de storyboard são ótimos, o que acaba enfatizando o quanto as cenas em computação gráfica são inferiores no conjunto. Entendo quem tenha apreciado a estética de U e sei que Hosoda já usou CGI no passado para representar este mesmo tipo de paisagem, mas sinto que o tiro saiu pela culatra no caso dos personagens: em contraste com suas contrapartes animadas tradicionalmente, eles parecem ser menos expressivos e interessantes.

Também preciso dar um destaque ao trabalho de áudio do filme, o que não é algo que dá para ignorar em uma história onde a música é um tema central. A trilha sonora é bacana e funciona bem para o que o filme propõe, sendo por vezes quase um musical – mas um pouco de variedade não incomodaria. A dublagem é particularmente simpática e Kaho Nakamura se sai muito bem, ainda mais considerando que este é seu primeiro papel em animações. O que me incomodou foi a mixagem, mas não sei se isso é algo do filme ou apenas da cópia que assisti, uma vez que era clara a diferença de equalização entre o que acontecia em U e no mundo real.

Assim, por mais que eu fique feliz em ver um filme como esse chegando a um grande público – até mesmo aqui no Brasil, onde esse tipo de coisa é pouquíssimo representada –, sinto que Ryû to sobakasu no hime está longe de ser o melhor trabalho de Hosoda ou até mesmo o melhor que a animação japonesa ofereceu nesse último ano. Apreciei o filme e vejo várias coisas bacanas nele, sobretudo quando estamos tratando da parte mais “humana” da trama, mas devo dizer que esperava mais (em parte por conta da repercussão internacional).

Ryû to sobakasu no hime é um filme que deve ser visto por todo mundo que já estava interessado por ele, afinal, é um grande lançamento, que supre o vácuo da ausência de mais animações tradicionais para o cinema. Entretanto, não sei se ele tem o que é necessário para quebrar o estigma e alcançar o grande público. Mas sempre há uma próxima vez, eu suponho.

Outras divagações:
Samâ uôzu
Ôkami kodomo no Ame to Yuki
Bakemono no ko
Mirai no Mirai

Texto: Vinicius Ricardo Tomal
Edição: Renata Bossle

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