Divagações: Poor Things
24.1.24
Admito não ser o maior conhecedor do mundo da filmografia de Yorgos Lanthimos. Até vi algumas coisas dele, mas não tenho a capacidade de fazer as comparações que esse filme provavelmente merece. Afinal, ao contrário de The Favourite, que só é tangencialmente esquisito, aqui o cineasta pisa forte no acelerador do cinema arthouse e entrega algo tão estranho quanto potencialmente ofensivo. Os fãs que me perdoem se eu estiver pregando para o coro, mas prometo que qualquer dia desses eu preencho essa lacuna.
Adaptando um livro de Alasdair Gray (que lamentavelmente faleceu alguns anos antes da produção se concretizar), Poor Things é um amalgama de elementos de romance gótico e humor negro embalados em uma estética onírica, que vai da câmera rígida do cinema da década de 1920 a um realismo fantástico de cores vibrantes e estética steampunk. Contra todas as expectativas, isso funciona, transformando uma narrativa desconjuntada em um produto coeso e tematicamente forte.
O filme acompanha a metafórica e literal evolução de Bella Baxter (Emma Stone), uma mulher sem memória e de disposição infantil que aparentemente foi criada de modo frankensteiniano por um médico recluso e deformado, Godwin Baxter (Willem Dafoe). Embora Bella inicie a trama quase que totalmente incapaz de se comunicar, seu progresso é rápido, o que leva o assistente de Godwin, o tímido Max McCandles (Ramy Youssef) a se encantar por ela. Porém, sentindo-se presa e querendo descobrir o mundo, Bella inicia uma viagem hedonística pelo mundo ao lado de Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), um advogado de motivações muito questionáveis.
O que se segue é uma história fundamentalmente pensada para discutir a condição humana, o crescimento pessoal, a evolução social e o papel da mulher nisso tudo. Com estranhas similaridades com Barbie, aqui não temos uma boneca que tem que aprender a lidar com os problemas e as limitações da realidade em relação ao seu mundo ideal, mas uma personagem que é uma folha em branco voraz para compreender e mudar o mundo, confrontando-se com suas partes mais degradantes e conseguindo sair mais forte disso.
Agora vem a parte cabeçuda para o filme cabeçudo. E me perdoem por esse rompante! Bella é, no início de sua jornada, puro id. A fascinação que ela causa nos outros personagens decorre justamente de sua maneira de lidar com todos os impulsos com completa liberdade, para o escândalo da “sociedade polida”. Ela é violenta, hipersexual e não demonstra empatia além de um nível básico. Mas, com o passar do tempo e com as experiências boas e ruins, sua compreensão da realidade se altera, tal como a sua relação com os outros, mostrando a hipocrisia por trás daqueles que a cercam.
Ao invés de abraçar o processo de recalque e controlar seus impulsos e questionamentos para se adequar a sociedade, Bella supera o cinismo e o niilismo que assola os demais. Isso faz com que Poor Things reproduza de modo bastante textual a perspectiva transformativa da filosofia nietzschiana, transformando sua protagonista em uma Übermensch (Überfrau?) moderna e fazendo com que as pobres criaturas sejamos nós, aqueles agrilhoados pelas correntes da sociedade. Talvez isso opere de modo um pouco exagerado – em certo ponto a personagem se torna uma feminista bissexual socialista –, mas eu aprecio o fato que o filme tenha levado esse tipo de discussão a sério.
Com uma cadência teatral, Emma Stone carrega a personagem com elegância e competência, fazendo funcionar um potencial papel muito complexo e que poderia ser desastroso em outras condições. Mark Ruffalo e Willem Dafoe também fazem um ótimo trabalho com seus personagens, apesar de Ruffalo ter ficado um pouco mais caricato na metade final (a despeito disso, ele reforça bem os temas da produção e ajuda nos momentos mais engraçados).
O filme é visualmente muito interessante, com uma fotografia lindíssima que junta o gótico vitoriano com um clima quase pulp. A grande variedade percebida ao decorrer dos atos dá uma oportunidade para Lanthimos ser criativo com suas escolhas de câmera e de tom. Isso é somado a uma trilha sonora certamente memorável, que amplifica a esquisitice com sons dissonantes e desconfortáveis. Pessoalmente, só não apreciei muito os exageros do figurino e da maquiagem, mas eles talvez amplifiquem o senso de ridículo de algumas cenas.
Falando nisso, acho importante dizer que o filme não é para todos – e digo isso da maneira menos elitista possível. O uso de nudez e sexo é constante, não há pudores em trabalhar temas complicados de modo questionável e há uma boa dose de cenas um pouco grotescas e explícitas. Poor Things não só não se esforça para ser amigável como ativamente tenta produzir choque e desconforto, o que deve afastar muitas pessoas. Além disso, o filme é longo e com um ritmo decididamente lento, o que é certamente desgastante, embora eu até tenha gostado de sair um pouco drenado da sala de cinema.
Com isso, Poor Things é um dos filmes mais interessantes e diferentes do “ano“ (leia-se, de fevereiro a fevereiro, afinal, os cinemas brasileiros tendem a receber os filmes da temporada de premiações um pouco depois de suas estreias internacionais) e merece ser visto por todos aqueles que buscam por uma experiência surreal e bem executada. Quem gosta do trabalho de Lanthimos deve saber o que esperar e mesmo quem, como eu, não tinha visto o diretor trabalhando nessa intensidade pode apreciar, desde que tenha uma dose generosa de disposição.
Outras divagações:
The Favourite
Texto: Vinicius Ricardo Tomal
Edição: Renata Bossle
Adaptando um livro de Alasdair Gray (que lamentavelmente faleceu alguns anos antes da produção se concretizar), Poor Things é um amalgama de elementos de romance gótico e humor negro embalados em uma estética onírica, que vai da câmera rígida do cinema da década de 1920 a um realismo fantástico de cores vibrantes e estética steampunk. Contra todas as expectativas, isso funciona, transformando uma narrativa desconjuntada em um produto coeso e tematicamente forte.
O filme acompanha a metafórica e literal evolução de Bella Baxter (Emma Stone), uma mulher sem memória e de disposição infantil que aparentemente foi criada de modo frankensteiniano por um médico recluso e deformado, Godwin Baxter (Willem Dafoe). Embora Bella inicie a trama quase que totalmente incapaz de se comunicar, seu progresso é rápido, o que leva o assistente de Godwin, o tímido Max McCandles (Ramy Youssef) a se encantar por ela. Porém, sentindo-se presa e querendo descobrir o mundo, Bella inicia uma viagem hedonística pelo mundo ao lado de Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), um advogado de motivações muito questionáveis.
O que se segue é uma história fundamentalmente pensada para discutir a condição humana, o crescimento pessoal, a evolução social e o papel da mulher nisso tudo. Com estranhas similaridades com Barbie, aqui não temos uma boneca que tem que aprender a lidar com os problemas e as limitações da realidade em relação ao seu mundo ideal, mas uma personagem que é uma folha em branco voraz para compreender e mudar o mundo, confrontando-se com suas partes mais degradantes e conseguindo sair mais forte disso.
Agora vem a parte cabeçuda para o filme cabeçudo. E me perdoem por esse rompante! Bella é, no início de sua jornada, puro id. A fascinação que ela causa nos outros personagens decorre justamente de sua maneira de lidar com todos os impulsos com completa liberdade, para o escândalo da “sociedade polida”. Ela é violenta, hipersexual e não demonstra empatia além de um nível básico. Mas, com o passar do tempo e com as experiências boas e ruins, sua compreensão da realidade se altera, tal como a sua relação com os outros, mostrando a hipocrisia por trás daqueles que a cercam.
Ao invés de abraçar o processo de recalque e controlar seus impulsos e questionamentos para se adequar a sociedade, Bella supera o cinismo e o niilismo que assola os demais. Isso faz com que Poor Things reproduza de modo bastante textual a perspectiva transformativa da filosofia nietzschiana, transformando sua protagonista em uma Übermensch (Überfrau?) moderna e fazendo com que as pobres criaturas sejamos nós, aqueles agrilhoados pelas correntes da sociedade. Talvez isso opere de modo um pouco exagerado – em certo ponto a personagem se torna uma feminista bissexual socialista –, mas eu aprecio o fato que o filme tenha levado esse tipo de discussão a sério.
Com uma cadência teatral, Emma Stone carrega a personagem com elegância e competência, fazendo funcionar um potencial papel muito complexo e que poderia ser desastroso em outras condições. Mark Ruffalo e Willem Dafoe também fazem um ótimo trabalho com seus personagens, apesar de Ruffalo ter ficado um pouco mais caricato na metade final (a despeito disso, ele reforça bem os temas da produção e ajuda nos momentos mais engraçados).
O filme é visualmente muito interessante, com uma fotografia lindíssima que junta o gótico vitoriano com um clima quase pulp. A grande variedade percebida ao decorrer dos atos dá uma oportunidade para Lanthimos ser criativo com suas escolhas de câmera e de tom. Isso é somado a uma trilha sonora certamente memorável, que amplifica a esquisitice com sons dissonantes e desconfortáveis. Pessoalmente, só não apreciei muito os exageros do figurino e da maquiagem, mas eles talvez amplifiquem o senso de ridículo de algumas cenas.
Falando nisso, acho importante dizer que o filme não é para todos – e digo isso da maneira menos elitista possível. O uso de nudez e sexo é constante, não há pudores em trabalhar temas complicados de modo questionável e há uma boa dose de cenas um pouco grotescas e explícitas. Poor Things não só não se esforça para ser amigável como ativamente tenta produzir choque e desconforto, o que deve afastar muitas pessoas. Além disso, o filme é longo e com um ritmo decididamente lento, o que é certamente desgastante, embora eu até tenha gostado de sair um pouco drenado da sala de cinema.
Com isso, Poor Things é um dos filmes mais interessantes e diferentes do “ano“ (leia-se, de fevereiro a fevereiro, afinal, os cinemas brasileiros tendem a receber os filmes da temporada de premiações um pouco depois de suas estreias internacionais) e merece ser visto por todos aqueles que buscam por uma experiência surreal e bem executada. Quem gosta do trabalho de Lanthimos deve saber o que esperar e mesmo quem, como eu, não tinha visto o diretor trabalhando nessa intensidade pode apreciar, desde que tenha uma dose generosa de disposição.
Outras divagações:
The Favourite
Texto: Vinicius Ricardo Tomal
Edição: Renata Bossle
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