Divagações: The Irishman

Embora Martin Scorsese seja um dos meus diretores favoritos, parece que ele pede muito quando entrega um filme de 3h30. E por mais que eu...

Embora Martin Scorsese seja um dos meus diretores favoritos, parece que ele pede muito quando entrega um filme de 3h30. E por mais que eu possa maratonar uma série e ver mais que quatro episódios de 50 minutos cada – o que daria um total de 3h20 –, o compromisso exigido por um filme como The Irishman parece ser muito maior.

Obviamente, eu não posso exigir dos outros (ou até de mim mesma) coisas como “não pause” ou todo um “grande respeito” pela “arte cinematográfica”. Mas, de alguma forma, isso está incrustado em mim e eu gostaria de ver este filme sem sequer poder pausar e com todas as condições de temperatura e pressão adequadas. Sinceramente, eu gostaria de ter visto esse filme no cinema e acho que eu gostaria mais dele nestas condições. Infelizmente, não foi assim que aconteceu – e, para completar, eu me sinto na obrigação de ser grata pela Netflix por propiciar que esse filme tenha sido realizado.

De qualquer modo, se você também acredita que Martin Scorsese e Robert De Niro devam fazer quantos filmes eles quiserem (ao contrário dos executivos dos grandes estúdios, que aparentemente já cansaram de ver os dois juntos), The Irishman é o filme certo para você. Isso sem contar que o longa-metragem trouxe a primeira parceria entre Scorsese e Al Pacino, o que é algo que você com certeza precisa conferir.

Baseado em um livro de Charles Brandt (que criou uma história de ficção com base em acontecimentos reais) e com roteiro de Steven Zaillian, The Irishman acompanha a “carreira” de um assassino da máfia. A princípio, Frank “The Irishman” Sheeran (Robert De Niro) era só um pai trabalhador, interessado em complementar a renda – nem que fosse desviando carga de seu caminhão. Ele sabia que estava se metendo com gente perigosa e fazendo coisas ilegais, mas não parecia se importar muito com isso. Soma-se a isso um jeito quietão, um gosto por explosivos e algumas provas de lealdade e, bom... Basta dizer que ele é um profissional bem sucedido, ainda que nunca tenha muito espaço sob os holofotes.

Entre os principais “chefes” de Sheeran estão o poderoso Russell Bufalino (Joe Pesci) e o líder sindicalista Jimmy Hoffa (Al Pacino). A seu modo, Sheeran desenvolve uma amizade com ambos e um desentendimento entre os dois pode ser capaz de o colocar em uma sinuca de bico – além de marcar para sempre seu relacionamento com uma de suas filhas, Peggy (Anna Paquin).

Por mais que esta seja a sinopse de The Irishman, o filme não é exatamente sobre isso. O que a produção faz é tentar humanizar uma figura que sempre é retratada como pouco inteligente e relativamente descartável: o brutamontes. Ao longo da trama, o personagem de De Niro tem diferentes responsabilidades, mas ele nunca é o líder, nunca é o cérebro por trás de nada. Ele faz o trabalho sujo, ajuda a acalmar ânimos exaltados, é cúmplice de um bocado de crimes e até oferece conselhos. Mas, a princípio, ele não parece ser o protagonista da história. Ele apenas obedece a ordens.

Porém, “humanizar” talvez não seja a palavra mais adequada aqui. O filme faz uma escolha consciente em retratar a família do personagem – que é inteiramente feminina – com pouco destaque. Anna Paquin, por exemplo, está em diversas cenas, mas tem pouquíssimas falas. O divórcio do protagonista também é tratado de forma bastante ligeira. Com isso, toda uma camada de drama fica apenas implícita, como se ele mesmo não se desse conta do que acontece sob seu teto, ou simplesmente não se importasse. Ao mesmo tempo, o trabalho e as lealdades de um mundo totalmente masculino ganham relevância.

The Irishman, desta forma, é um filme que olha para trás, sendo proposital e constantemente nostálgico. Ele conta uma história que acontece no passado de seus próprios personagens e, para isso, foram escolhidos atores que precisaram ser rejuvenescidos digitalmente (os efeitos, aliás, são realmente muito bons!). As escolhas narrativas da produção e o mundo que ela retrata não existem mais e cada vez mais se afastam da imaginação popular. Para completar, o longa-metragem foi filmado e editado com brilhantismo, mas com uma estética obviamente datada, fazendo referência a obras que já eram “de época” há 20, 30 anos.

Com tudo isso, quero dizer que The Irishman se parece com uma despedida. Por mais que novos “filmes de máfia” possam ser feitos no futuro, quantos terão a honra de reunir Martin Scorsese, Robert De Niro, Al Pacino, Joe Pesci e Harvey Keitel? Quantos poderão ser efetivamente comparados com as grandes obras do gênero feitas no passado?

Então, posso garantir que não é fácil ver um filme tão longo e tão demandante (ainda mais com a carência de grandes sequências de ação), mas é ótimo que esse filme pôde ser feito com tanto apreço e profissionalismo. E embora você não seja obrigado a reverenciar um filme – ainda mais um que, sim, tem suas falhas –, dê uma chance para The Irishman.

Outras divagações:
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Casino
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