Divagações: Anora


Sean Baker tem sido uma figura controversa. Como o diretor e roteirista atingiu a fama sendo um cronista dos marginalizados, retratando e dando voz a vários grupos estigmatizados – especialmente envolvendo o trabalho sexual –, sempre houve quem o acusasse de explorar uma “estética da pobreza”.

Recentemente, depois de Anora receber a Palma de Ouro em Cannes, seus críticos mais fervorosos desenterraram antigas discussões mostrando que o diretor seguia e curtia alguns indivíduos reacionários nas redes sociais. Como não apareceu uma boa explicação, isso alimentou discussões sobre a “morte do autor” e a conflituosa situação de julgar ou não o filme pelas opiniões políticas do seu realizador, especialmente quando elas não são exatamente claras.

Eu sinto a necessidade de levantar esse ponto porque quem me conhece (e sabe da minha produção para além das fronteiras desse espaço) entende que acredito na importância de compreender bem o lugar de onde cada autor fala. Como não existe arte que não seja política, saber a autoria de uma obra é vital para que cada um tire suas próprias conclusões e decida o que quer ou não consumir. Além disso, as histórias que Baker traz são eminentemente políticas e não podem ser vistas fora das relações de classe, raça ou gênero.

Mas vamos ao filme em si. Anora (Mikey Madison), ou Ani, como prefere ser chamada, é uma stripper nova-iorquina. Por conta de seu trabalho, ela acaba cruzando com Ivan (Mark Eydelshteyn), um jovem russo que é filho de um oligarca e que está nos Estados Unidos para estudar, mas que não parece lá muito disposto a fazer nada que preste da vida.

Os dois acabam se envolvendo romanticamente e, em uma semana intensa de festas e loucuras, resolvem se casar. A notícia não é nem um pouco bem recebida pela família de Ivan, que manda um grupo de empregados para resolver a questão e anular o casamento antes que os pais dele cheguem aos Estados Unidos e levem o rapaz de volta para a Rússia.

Por conta do tom, eu tenho dificuldade em descrever Anora como uma comédia. Apesar de ser um filme com um senso de humor próprio, ele nunca é exatamente o que você espera dele. Enquanto o primeiro ato é marcado por excessos e erotismo (e, talvez, um tom que dê a entender que esse é um romance), a situação escala para uma farsa cada vez mais absurda, que ocupa o centro do filme e tem seus méritos por si só.

De qualquer modo, acredito que esse filme é um daqueles que só adquire real significado com o seu final – na sua última cena, literalmente. Assim, mesmo que a descrição ou os materiais de divulgação talvez não sejam do seu gosto, talvez valha a pena dar uma chance.

Esse efeito, aliás, só é possível por conta da atuação de Mikey Madison, que consegue levar complexidade a uma personagem que muitos taxariam como sem classe ou vulgar. Ela subverte as expectativas em relação à protagonista, entregando alguém com uma vulnerabilidade bastante tocante embaixo de todo um verniz de tenacidade e agressividade. Isso funciona particularmente bem em contraste com personagens como Toros (Karren Karagulian) e Igor (Yura Borisov), os empregados da família de Ivan, que são parte integral da trama posterior.

Com um ritmo frenético, Anora parece uma duração bem menor do que as longas quase duas horas e meia que ele tem, especialmente depois que engata a trama principal. Mesmo as cenas mais lentas estão longe de deixar o público respirar, o que é ao mesmo tempo fisicamente exaustivo e necessário para tornar a conclusão dramática mais impactante.

A fotografia também é muito bonita, principalmente ao dar um efeito narrativo para a luz, que se torna um marcador de tempo e de classe. Falando nisso, Anora consegue deixar bem claro o que caracteriza o poder nesse tipo de atividade sem, contudo, romantizar ou situar a posição de trabalhadoras sexuais unicamente como vítimas, criando uma ambiguidade e uma dinâmica bem interessantes.

É claro que esse não é um filme para todos. Há uma boa dose de nudez e o sexo envolvido nem sempre é apresentado do modo mais artisticamente elevado, que justifique a sua inclusão. Porém, para quem não se incomoda com isso, acredito que Anora é um filme que merece ser visto – especialmente no cinema. Ele se revelou como algo muito mais interessante e genuíno do que eu esperava inicialmente, sendo uma experiência intensa em mais de um sentido.

Outras divagações:
The Florida Project

Texto: Vinicius Ricardo Tomal
Edição: Renata Bossle

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