Divagações: Gojira -1.0

Os fãs de Godzilla vivem um momento único. Por um lado, nunca tivemos tantos filmes do mostrengo em tão pouco tempo – graças à versão ameri...

Gojira Minus One
Os fãs de Godzilla vivem um momento único. Por um lado, nunca tivemos tantos filmes do mostrengo em tão pouco tempo – graças à versão americana da Legendary que, apesar de não ser absurdamente competente, é decente o suficiente para render seu quarto título. Por outro lado, é difícil olhar para os rumos da série no ocidente e ver que suas raízes essencialmente nipônicas estão sendo pouco a pouco esquecidas no mar de sequências e universos compartilhados que Hollywood oferece.

De qualquer modo, sete anos depois de experimentar com uma radical releitura da franquia com o divisivo Shin Gojira, a Toho volta aos cinemas com uma filosofia oposta ao seu filme anterior. Gojira -1.0 é um verdadeiro retorno aos temas que consagraram o filme de 1954 como um clássico.

Capitaneado pelo diretor e roteirista Takashi Yamazaki, mais conhecido por seu trabalho em animação e adaptações de outras propriedades, Gojira -1.0 é um filme de época que, tal como o original, retorna ao Japão pós 2ª Guerra. Agora, a narrativa é centrada em Koichi Shikishima (Ryunosuke Kamiki), um ex-piloto kamikaze que apenas sobreviveu ao conflito devido ao ataque de uma misteriosa criatura gigante em uma ilha onde havia parado para reparos do seu avião.

Assolado pela culpa de não ter realizado sua missão e pela covardia na hora de enfrentar o monstro, Koichi retorna para Tóquio ainda assombrado pelos fantasmas da guerra. Na cidade, ele encontra a jovem desabrigada Noriko (Minami Hamabe) e a bebê que ela carrega, acolhendo-as meio a contragosto e, eventualmente, formando laços. Porém, com o possível retorno do monstro e o perigo que ele representa, Koichi precisa encarar seu passado, juntando-se a um grupo de ex-soldados e marinheiros dispostos a enfrentar a criatura.

Com uma dose bastante generosa de drama, este é um dos filmes do Godzilla com menos Godzilla. Talvez também seja a produção recente em que ele menos funciona como um personagem, servindo mais como um obstáculo narrativo para o lado humano da trama. Obviamente, não há nada de incomum no “monstro como metáfora” e a noção de um Godzilla com “personalidade” é relativamente recente.

Ainda assim, se comparado à força quase divina de destruição que tínhamos em Shin Gojira ou à opção mais bestial da Legendary, o Godzilla desta produção acaba ficando particularmente apagado. Essa é a versão menos interessante do personagem nos tempos recentes, o que pode acabar desapontando aqueles que forem aos cinemas esperando algo centrado nos monstros e na destruição.

Porém, não acho que podemos jogar essa centralidade do drama humano contra o longa-metragem, pois Gojira -1.0 é um filme surpreendentemente competente quando se trata de apresentar esse aspecto da trama. Afinal, é uma representação sólida e verossímil do Japão no período pós-guerra.

Nesse cenário, o protagonista é atormentado pelo transtorno pós-traumático e pela inabilidade de tirar seu coração do campo de batalha. Ainda que isso às vezes descambe um pouco para o melodrama e uma interpretação exagerada, o recurso funciona bem para fazer com que essa seja uma produção fundamentalmente carregada por seus personagens humanos e não pelo monstro, sendo capaz de comover o público com ou sem a participação do personagem titular.

Se o Godzilla de 1954 representava a ameaça nuclear e dava corpo aos temores de aniquilação da população civil japonesa, esta encarnação talvez represente a guerra em um aspecto mais subjetivo. O filme dá forma aos traumas coletivos de toda uma geração de soldados que se viram impotentes para fazer alguma diferença em uma guerra entre uma nação que não estava preocupada com seu bem-estar e uma superpotência com um poder de destruição incomparável. Enfrentar o monstro é lidar com esses traumas e encontrar forças para seguir em frente.

Assim, a mensagem central tem um bom resultado nessa ambientação – realizando as ambições do terceiro ato de Shin Gojira de uma forma muito mais efetiva –, ainda que não entregue nada de particularmente original ou revolucionário. Nesse sentido, o filme acaba sendo mais “redondo” e palatável que seu antecessor direto, trocando um pouco da esquisitice e das ambições narrativas por uma execução técnica caprichada e uma história que funciona bem tanto no seu país de origem quanto no ocidente. Tudo isso sem cair na galhofa que ficou conhecida por aqui, fazendo valer o peso que a série tem.

Não sei se os fãs da destruição descerebrada que marcou o título nos últimos anos vão ser saciados. Mas Gojira -1.0 é um bom filme, resgatando as origens do personagem e trazendo essa veia mais adulta para os dias de hoje. Sinceramente, recomendo a produção a todos os interessados que forem capazes de encontrar uma das raras sessões presentes nos cinemas nacionais.

Outras divagações:
Shin Gojira

Texto: Vinicius Ricardo Tomal
Edição: Renata Bossle

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