Divagações: Xia nü

A grandiosidade de filmes de kung fu não é exatamente uma novidade para o público ocidental. Em meados dos anos 1970, quando Xia nü chego...

A grandiosidade de filmes de kung fu não é exatamente uma novidade para o público ocidental. Em meados dos anos 1970, quando Xia nü chegou ao Festival de Cannes, o público e os críticos já se deliciavam com a poesia, a mistura de gêneros, a beleza visual, as mensagens morais e, claro, as belas lutas de kung fu. O filme, inclusive, provavelmente não era o primeiro contato dessas pessoas com o gênero, mas ele trazia tudo isso em uma roupagem completa – com mais de três horas de duração – e bastante caprichada visualmente.

Tantas décadas depois, o longa-metragem dirigido e escrito por King Hu continua segurando com firmeza sua posição como uma obra-prima do gênero. Ainda assim, o filme nunca conquistou um lugar no coração do grande público, falhando tanto em seu lançamento doméstico original, quando foi exibido em duas partes lançadas a um ano de distância uma da outra, quanto em sua reedição nos festivais de cinema como uma produção única. Resta, então, a críticos e escolas de cinema que mantenham a obra tão longe do esquecimento quanto possível.

Passado na China do século 14, Xia nü conta a história de uma moça, Yang Hui-ching (Feng Hsu), que é fugitiva de um governo corrupto que matou toda a sua família. Ainda que exista uma grande recompensa por sua cabeça, ela decidiu sair do templo que a abrigava e, agora, tenta viver escondida em uma pequena cidade. No entanto, quando oficiais redescobrem seu paradeiro, um humilde calígrafo e pintor local, Ku Shen Chai (Chun Shih), acaba a ajudando.

Mas, ainda que essa sinopse corresponda ao que acontece no filme, há muito mais sendo exibido. A história do pai de Yang é contada em flashbacks e a dinâmica da vida sem graça de Ku é, a princípio, tão relevante quanto os desafios enfrentados pela moça e seus guardiões (suponho que muita gente de hoje em dia possa se identificar com um personagem de quase 30 anos que mora com a mãe e lida com a pressão para encontrar um bom emprego). Também há todo o ponto de vista dos oficiais sobre a perseguição que se segue – sendo que eles nunca mencionam o esquema usado para enquadrar toda uma família no passado – e a relação dos personagens com os monges do templo.

Ao mesmo tempo, o ritmo usado para trazer tudo isso para a tela é lento e paciente. A construção da história se dá em camadas que se sobrepõem aos poucos, garantindo que exista uma profundidade, mas sem assustar o público (como consequência, muitos podem ficar com sono). A estrutura de Xia nü também é bastante diferente da que o público ocidental está acostumado e há desdobramentos da história que poderiam facilmente ter ficado de fora, especialmente o último, que é justamente o que traz mais cenas de luta.

Aliás, as lutas demoram um bocado para acontecer e, por mais interessantes que sejam, não são tão frenéticas ou frequentes quanto poderiam. Não me entendam mal, principalmente porque isso faz sentido dentro do ritmo do filme e permite que esse tipo de sequência não ocorra de forma gratuita. Além disso, os cenários e os figurinos garantem bastante poesia e fazem que seja difícil tirar os olhos da tela. Os ângulos de câmera também são criativos e sabem se aproveitar da coreografia, especialmente dos pulos – não é à toa que Xia nü sempre seja citado como uma das principais referências para Wo hu cang long.

Inclusive, outro ponto em comum entre os dois filmes é a presença de uma protagonista feminina forte. Nesse caso, apesar da aparência delicada, Yang Hui-ching está longe de ser uma figura frágil e é justamente contraposta pelo ingênuo e fraco Ku Shen Chai, que se salva apenas por sua inteligência estratégica e por ser um ávido leitor (ele é um artista e seu sonho é virar professor, vejam bem). Yang ainda se destaca por ser muito mais livre moralmente que sua contraparte masculina, trazendo valores diferentes que os propagados pela mãe do rapaz e ampliando o alcance do filme em si.

Sem ser um filme de kung fu (ou uma história wuxia) normal, Xia nü lida com um espectro muito mais amplo e se mantém um filme surpreendente e digno de grandes discussões pós-sessão mesmo tantos anos após seu lançamento. Por mais que tenha servido como inspiração para tantas obras que o seguiram – Quentin Tarantino é outro fã, inclusive –, o longa-metragem ainda mantém certo frescor e muitas das soluções visuais adotadas continuam funcionando perfeitamente bem. Ao contrário de tantos filmes do período, que podem trazer sorrisinhos amarelos para o público atual, não há constrangimentos em Xia nü. O filme é mesmo uma obra-prima.

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