Divagações: Ladri di Biciclette

Existem muitos filmes sobre a pobreza, o que é perfeitamente justificável, uma vez que o ser humano adora se ver retratado em situações extr...

Existem muitos filmes sobre a pobreza, o que é perfeitamente justificável, uma vez que o ser humano adora se ver retratado em situações extremas. Não sei se o objetivo é mostrar sua imbecilidade em permitir que a situação chegue nesse ponto ou sua incrível – e modesta – capacidade de superar obstáculos. Normalmente sou mais tentada a considerar a segunda opção, até porque há uma gama de filmes bem maior que se encaixa nela. Só que Ladri di Biciclette é um filme atípico e, por isso, se enquadra melhor no primeiro caso.

Obviamente, a estupidez a que me referi no parágrafo anterior não é a de quem chegou na situação de pobreza retratada, mas da humanidade em geral, que permite e convive com contextos desse tipo. Isso inclui eu e você. Com Ladri di Biciclette às vezes eu me surpreendia pensando “mas isso é na Itália”! As pessoas tinham que vender até os lençóis para conseguir ir trabalhar. E, veja bem, o filme foi feito em 1948, o que não faz tanto tempo assim. É uma imagem bem diferente da que temos atualmente do país, não?

Esse é o choque básico do Realismo Italiano – merecendo o nome que recebeu em diversos sentidos. Ladri di Biciclette conta a história de Antonio Ricci (Lamberto Maggiorani) que, depois de muito esperar, finalmente consegue um emprego. A vaga disponível é para colar cartazes pela cidade, mas, para isso, ele precisa de uma bicicleta. Como a dele estava no penhor, sua mulher dá os lençóis em nome dessa esperança. O problema é que logo no primeiro dia sua bicicleta é roubada, assim, ele parte em uma busca na companhia do filho Bruno (Enzo Staiola).

A propósito, Enzo Staiola é a coisa mais apaixonante do filme. Seu personagem é um menino esperto que enfrenta as crueldades da vida praticamente sem reclamar, porém ele mostra no olhar as provações pelas quais está passando sem ter culpa nenhuma. A jornada em busca da bicicleta é cansativa, mas sua missão é acompanhar o pai para lhe dar forças e é isso o que ele faz durante todo o filme. Qualquer um com coração tem pena dessa criança.

Ao mesmo tempo, o pai também é motivo de pena. Seu esforço em recuperar a bicicleta roubada para poder alimentar sua família é de chorar. Não se trata de melhorar de vida, mas de não morrer de fome. Embora ele se dedique a busca no tempo de um dia, seu aspecto físico dá a impressão que semanas se passaram. A falta de esperança, a perspectiva de chegar em casa e ter que encarar a mulher, a tristeza por não dar ao filho o que ele merece, o sentimento de perda. Tudo é terrível e pesa muito sobre seus ombros. É praticamente possível sentir a loucura chegando, disposta a dominá-lo.

Vittorio De Sica faz, com Ladri di Biciclette, uma ficção com alma de documentário, mas que apela diretamente ao coração. Com certeza, muitas famílias passaram por provações piores que essa, mas é através da simplicidade da história de uma bicicleta roubada que se percebe a dimensão daquilo que a pobreza é capaz. O filme é um clássico com sua beleza triste e desesperadora, mas sobrevive até hoje, principalmente, pelo soco de realidade que dá na cara dos espectadores. A Itália de 1948 talvez seja menos cruel que o bairro na periferia da sua cidade.

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