Divagações: Mare Nostrum

Unir drama e elementos fantásticos é algo que funciona bem na literatura, sendo que diversos autores da América Latina se tornaram mestres...

Unir drama e elementos fantásticos é algo que funciona bem na literatura, sendo que diversos autores da América Latina se tornaram mestres no assunto. No cinema, essas águas são navegadas, mas com cautela – às vezes, com cautela até demais. Em Mare Nostrum, temos um exemplo disso.

Com texto e direção de Ricardo Elias, o longa-metragem acompanha as desventuras de Roberto (Silvio Guindane) e Mitsuo (Ricardo Oshiro), dois brasileiros que acabaram de voltar do exterior após experiências que não deram lá muito certo. Ambos retornam para casa e precisam lidar não só com o sentimento de fracasso, mas também com dívidas familiares e a falta de perspectiva. Inesperadamente, um terreno abandonado acaba os unindo.

Tudo acontece porque Roberto precisa lidar com uma imprevista dívida de IPTU vinculada ao nome de sua mãe (Teka Romualdo) e com a filha (Lívia Santos), que não vai para a escola devido a um débito (já negociado) de R$ 30 mil. Quando decide vender o tal terreno, descobre que ele está no nome de outra pessoa, o pai de Mitsuo (Edson Kameda). O rapaz, contudo, perdeu tudo o que tinha, seu casamento está em crise e precisa de dinheiro para recomeçar a vida – algo com que sua irmã (Maya Hasegawa), também bastante endividada, não pode ajudar.

No vai e vem atrás da papelada do terreno, Roberto e Mitsuo viajam pelo estado de São Paulo na companhia do falante corretor Orestes (Carlos Mecene). No processo, eles acabam mergulhando no mundo das histórias do falecido pai de Ricardo, João (Ailton Graça), que acreditava que o terreno era mágico, sendo capaz de realizar desejos. Com o tempo, entretanto, eles precisam admitir que realmente há algo de especial em relação ao lugar.

Mare Nostrum, dessa forma, acaba se tornando um filme sobre a relação entre pais e filhos, ecoando (bem) levemente a Big Fish – mas sem a explosão de cores e com uma magia contida. E, também, sem uma grande catarse emocional: a jornada leva Roberto e sua filha a entrarem em contato com diversas pessoas que lembram com saudosismo de João, mas a resistência do protagonista em rever seu passado é maior até mesmo do que sua capacidade de duvidar de um terreno mágico.

Com muitos sentimentos restrito a nuances, o filme é sensível, mas não emociona tanto quanto poderia. Do outro lado, a trajetória de Mitsuo é muito mais simples e talvez seja até mais bonita, mas, na prática, ele acaba sendo apenas mais uma tentar extorquir Ricardo.

Aliás, a noção de ilegal, imoral e antiético está um tanto quanto ausente em Mare Nostrum. Há gente exigindo dinheiro para assinar um papel que já deveria ter sido assinado, outro querendo um ‘presente’ para autorizar a publicação de uma biografia, além de uma pessoa assumindo a autoria do trabalho alheio e de um colégio que impede uma criança de frequentar aulas. Tudo isso é acompanhado por um sentimento de consternação, sem qualquer revolta. É a normalização da pilantragem.

Para completar, todos os problemas parecem se resumir a dinheiro – a única coisa que, aparentemente, o terreno não pode dar. Esse aspecto denota uma absoluta falta de criatividade dos personagens para lidar com a situação e, obviamente, não combina com um filme onde uma máquina de fliperama pode simplesmente se materializar em uma praia. Inclusive, quando você tem uma personagem que alega ter conseguido um salão de beleza graças ao terreno mágico, a noção de imediatismo para ter dinheiro na conta deveria dar uma bela diminuída – só que não.

Assim, por mais que tenha uma premissa muito interessante, Mare Nostrum se perde em uma execução carente de boas ideias e de sentimentos mais aflorados (não dá para confundir sensibilidade com passividade). Com bons atores – destaque especial para a jovem Lívia Santos – e personagens que poderiam ser melhor aproveitados, o longa-metragem deixa claro que tem potencial, mas é uma pena que não o entregue em sua totalidade.

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