Divagações: Manbiki kazoku

Quem passa com frequência aqui pelo blog deve ter reparado que, em 2018, eu tirei um ano “quase sabático”, ficando bastante afastada do gr...

Quem passa com frequência aqui pelo blog deve ter reparado que, em 2018, eu tirei um ano “quase sabático”, ficando bastante afastada do grande volume de notícias sobre cinema que sai diariamente (e que eu acompanhava em um ritmo frenético desde o final de 2009). Com isso, fui assistir a Manbiki kazoku praticamente no escuro, algo que não acontecia a muito tempo. E foi uma ‘descoberta’ maravilhosa.

Essa produção, que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes e foi a escolhida pelo Japão para representar o país no Oscar, é toda construída em cima do conceito de família, mexendo com as expectativas do público sobre o tema nesse processo. A ideia, aliás, teria surgido na mente do diretor e roteirista Hirokazu Koreeda em 2013, juntamente com a pergunta “o que faz uma família?”. Ele também definiu Manbiki kazoku como um filme “socialmente consciente”, algo que não podemos negar.

A história acompanha uma família japonesa bastante carente. Em uma casa pequena e bastante entulhada, moram a avó (Kirin Kiki), duas netas (Sakura Andô e Mayu Matsuoka), o marido da neta mais velha (Lily Franky) e o filho do casal (Jyo Kairi), que acredita que apenas as crianças que não estudam em casa vão para a escola. Apesar das dificuldades e de eventuais desentendimentos, contudo, eles parecem viver em relativa harmonia.

Um dia, após roubar mantimentos em um supermercado, pai e filho encontram uma menina (Miyu Sasaki) que, aparentemente, sofre agressões dos pais e a levam para casa. Embora inicialmente relutantes, os demais membros da família passam a se apegar à recém-chegada, mas isso também expõe as estranhas rachaduras do lar – e outros aspectos estranhos que envolvem o dia a dia de todos. Simultaneamente, o garoto começa a questionar certos aspectos do estilo de vida da família e das atitudes dos adultos.

Assim, Manbiki kazoku apresenta seus personagens de uma forma que criamos empatia por eles antes de conhecermos seus defeitos. Na sequência, o filme vai equilibrando os aspectos bons e ruins de cada pessoa, criando uma profundidade importante para o momento em que somos apresentados à verdadeira realidade daquela família.

Ainda que o ritmo e a estrutura da história sejam diferentes da tradicional fórmula hollywoodiana, não há nada capaz de afastar o público. A produção conta uma história linear e bastante envolvente, que consegue surpreender tanto com cenas delicadas e de grande sensibilidade quanto com a revelação (quase) final. As sequências que envolvem uma viagem de todo o grupo para a praia, aliás, não somente exploram os relacionamentos familiares ali presentes, mas também aproximam o espectador e os personagens, gerando uma identificação que, de outra forma, seria muito mais difícil de criar.

Aliás, a construção de muitas das cenas de Manbiki kazoku é primordial. A própria abertura do filme – com pai e filho dentro do mercado em um roubo com movimentos praticamente ensaiados – deixa claro o sentimento de unidade entre os dois. Por mais que o ato em si não seja exatamente elogioso, sinto que muitos filhos gostariam de ter uma parcela dessa cumplicidade e dessa sensação de companheirismo com seus pais.

Para completar, os atores entregam atuações carregadas nas sutilezas e há um respeito pelo arco de desenvolvimento de cada personagem – que não são exatamente simultâneos ao longo do filme. Lily Franky, por exemplo, recebe muita atenção desde o começo e ‘rouba’ praticamente todas as cenas em que está presente. Mas isso não impede que Sakura Andô tenha um destaque crescente e que as atitudes de sua personagem, aos poucos, conquistem um espaço no coração do espectador. O mesmo vale para a simpatia que criamos pela avó, que vai ganhando em ‘rabugices’ e mistérios ao longo do filme, e pela personagem de Mayu Matsuoka, talvez a mais perdida e confusa de todo o grupo.

Ao final, é o destino das crianças o que mais importa e sabemos que ele foi mudado para sempre pelo episódio que presenciamos. É triste e muito bonito ao mesmo tempo.

Com isso, Manbiki kazoku é um ótimo exemplo de uma história levada por seus personagens, narrada com cuidado e respeito e bem-sucedida graças às atuações. É um filme que merece todos os prêmios que vem recebendo pelo mundo e que, mesmo sendo intrinsecamente japonês, fala com todos e para todos.

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