Divagações: Alita: Battle Angel

Houve um tempo, no início da década de 1990, que o mercado ocidental não tinha ideia algum do que um mangá era. Aqueles estranhos quadrinh...

Houve um tempo, no início da década de 1990, que o mercado ocidental não tinha ideia algum do que um mangá era. Aqueles estranhos quadrinhos japoneses com traços expressivos e dinâmicos eram desconhecidos pelo grande público, ficando relegados a um punhado de entusiastas que viam neles coisas radicalmente diferentes dos materiais que eram produzidos pelos norte-americanos no mesmo período.

Mas, ainda que não ostentassem muita popularidade entre o grande público, algumas obras acabaram sendo seminais para toda uma geração de artistas e fãs que tiveram contato com o punhado de coisas que conseguiu aportar em terras ocidentais. Dentre essas, Akira e Ghost in the Shell são, sem dúvidas, as mais famosas. Porém, Gunnm, do mangaká Yukito Kishiro, é outra obra do cyberpunk japonês que, mesmo sem a fanfarrara, conseguiu capturar a imaginação de gente como James Cameron e Guillermo del Toro.

Não é à toa que o primeiro vem planejando uma adaptação cinematográfica da obra desde o início dos anos 2000; assim, mais de quinze anos separam os primeiros rumores do lançamento de Alita: Battle Angel. Entretanto, em vez de ser dirigida por Guillermo del Toro, como se cogitava inicialmente, a produção ficou nas mãos de Robert Rodriguez, que também tem experiência com o tipo de ação estilosa que essa obra precisa.

O filme, aliás, apesar de carregar o nome ocidental da obra e fazer concessões ao público americano, continua relativamente fiel ao material original. Tal como nos quadrinhos, a história se passa no século 25, depois que uma grande guerra destruiu todas as cidades flutuantes da terra, com exceção de Zalem, o último reduto dos ricos e poderosos da humanidade.

Embaixo de Zalem está o imenso ferro-velho conhecido como a Cidade da Sucata; e é lá que o médico e engenheiro Dyson Ido (Christoph Waltz) encontra o que parece ser os restos de uma ciborgue desativada. Ele a leva para casa e a reconstrói, mas, infelizmente, ela não se lembra de seu passado, de modo que Ido acaba a nomeando de Alita (Rosa Salazar).

Porém, há mais sobre Alita do que é mostrado inicialmente: sua atitude e aparência adolescente é colocada em xeque quando ela demonstra ter força e capacidade de combate muito acima do normal. Isso atrai a atenção de gente como o inescrupuloso Vector (Mahershala Ali), que comanda um circuito de Motorball, esporte perigoso que mistura combate e patinação.

Tendo que lidar com a afeição e os sentimentos conflituosos do ambicioso sucateiro Hugo (Keean Johnson) e a perseguição de oponentes como o mercenário Zapan (Ed Skrein) e o criminoso Grewishka (Jackie Earle Haley), Alita vai aprendendo mais sobre si mesma, seu passado e o mundo que a cerca. Dessa forma, ela amadurece e descobre o que é ser humana em um futuro de máquinas e ciborgues.

Assim, o maior pecado de Alita: Battle Angel é justamente tentar condensar décadas de exposição e personagens em um filme de duas horas. Ainda que se atenha mais aos três primeiros volumes do mangá e aos dois episódios lançados para vídeo em 1993, o filme tenta contextualizar e estabelecer seu cenário com os olhos em uma possível franquia.

Com isso, a produção insere dados e informações que só viriam a ser revelados muito mais à frente na trama, dando a impressão de um roteiro um pouco inchado e desencontrado, que tem medo de ser sutil. A quantidade absurda de locais, personagens e acontecimentos joga o ritmo do filme para o alto e faz com que ele pareça ter bem mais do que o seu tempo de duração, sendo o bastante pra deixar qualquer um confuso – ou desinteressado.

Mesmo assim, como adaptação, o longa-metragem é bastante competente e dá pra ver que os envolvidos realmente gostam do material original. O filme é tão fiel quanto pode ser uma obra voltada ao público estadunidense: foram alterados a nacionalidade e o nome de alguns dos personagens (inclusive da protagonista), mas sem os exageros constrangedores que Ghost in the Shell cometeu, por exemplo.

Em Alita: Battle Angel, alguns acontecimentos são mudados de ordem em relação à obra original e existem explicações diferentes sobre o passado de alguns personagens. O próprio Motorball – uma marca da franquia, mas que não está presente em seu início –, é mostrado antecipadamente para já situar os espectadores daquele universo.

Nestas mudanças, quem sai ganhando é Ido. Afinal, Christoph Waltz é um ator muito competente e ele acabou ganhando um material mais interessante para trabalhar do que o que havia no personagem original, pois o filme enfatiza um pouco seu aspecto paternal.

Quanto a própria Alita, bom, ela se encontra em uma posição complicada. Entendo que o objetivo era fazer uma personagem que começasse mais ingênua e maravilhada com o mundo e, progressivamente, fosse amadurecendo em vista da brutalidade que a cerca. Contudo, acho que a movimentação entre os extremos foi um pouco brusca demais, o que deixa o filme com um cara de ‘coming of age’ mal resolvido; mas, pelo menos, esse não era mesmo o foco.

Como Gunnm é uma série que, em minha opinião, é mais estilo que substância, a simplificação de certos conceitos acaba não pesando muito. No geral, considero que a adaptação foi competente e respeitosa, mesmo com a decisão tremendamente questionável de alterar digitalmente os olhos de Rosa Salazar – o que denota, talvez, uma interpretação esquisita do papel dos olhos no traço original do autor (que, diga-se de passagem, nunca desenhou a protagonista de modo distinto de qualquer outra personagem). Mas, pelo menos, isso ajuda a dar uma identidade visual forte ao filme.

Falando em visual, o mesmo se aplica a Cidade da Sucata, com um senso de decadência e destruição que faz jus ao mangá. Dito isso, o filme até tenta vender a cidade como uma metrópole cosmopolita de refugiados, mas é meio limitado em suas ambições de mostrar diversidade – ainda mais por não ter nenhum asiático no elenco de uma obra asiática, o que é um pouco incomodo.

De qualquer modo, a ação também é interessante e com bastante estilo, sem medo do exagero. O filme usa bem a ambientação para entregar coisas diferentes, já que tem muita gente que não necessariamente respeita os padrões anatômicos humanos. Ou seja, ainda que seja tudo em computação gráfica, pelo menos é uma boa computação gráfica.

No final das contas, Alita: Battle Angel talvez seja a primeira adaptação para live action de um quadrinho japonês que consegue ser relativamente fiel e, também, um filme decente por si só. Entendo que o visual exagerado e a temática excessivamente fantástica podem não combinar bem com o palato de todos os espectadores, mas é bem surpreendente que esse filme tenha saído do jeito que saiu – sem muitas concessões.

Obviamente, o filme peca um pouco em sua narrativa, jogando responsabilidade demais em sua ambientação e na possibilidade de uma sequência para manter o espectador interessado. Porém, considerando o desastre que a produção poderia ser, saí do cinema mais do que satisfeito. E, agora, certamente daria meu voto de confiança para ver outro capítulo da saga de Alita. 

Outras divagações:
Machete
Sin City: A Dame to Kill For

Texto: Vinicius Ricardo Tomal
Edição: Renata Bossle

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