Divagações: Full Metal Jacket

Se existe um tema constante na obra de Stanley Kubrick , ele é a guerra. Presente desde seu primeiro filme, ela teve um papel menor em ou...

Se existe um tema constante na obra de Stanley Kubrick, ele é a guerra. Presente desde seu primeiro filme, ela teve um papel menor em outras produções e raramente ficou ausente por completo. Nascido em 1928, o cineasta entrou em contato com conflitos armados durante boa parte de sua vida. Seus pais eram marcados por guerras e ele também o foi.

Fear and Desire é o primeiro longa-metragem, o filho rejeitado. Paths of Glory é a humanização idealizada do combate oposta pela política. Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb volta ao tema da política, mas de forma cômica. Em Full Metal Jacket, contudo, a guerra ganha complexidade. Ela é tudo isso e mais um pouco.

Assim como em outras obras, a produção é dividida em momentos bem distintos que, nesse caso, são dois. No primeiro, um grupo de recrutas participa de um treinamento com o sargento Hartman (R. Lee Ermey). Ele é durão, exagerado e os coloca em um regime rígido de exercícios. Alguns soldados lidam bem à pressão – como Joker (Matthew Modine) e Cowboy (Arliss Howard), que logo se tornam amigos –, mas outros encontram dificuldades, como Gomer Pyle (Vincent D'Onofrio), o que leva o treinamento como um todo a um final trágico.

Tudo parece superado na segunda parte do filme. Já no Vietnã, Joker espera para efetivamente participar de alguma ação enquanto trabalha no jornal das tropas. Ao seu lado está o fotógrafo Rafterman (Kevyn Major Howard), com o qual ele assume uma atitude estranhamente paternalista. Joker tem seus ares intelectuais, mas é um jovem que quer viver o momento e se deixar marcar pelos horrores da guerra – algo que, eventualmente, ele consegue.

Os dois segmentos não deixam de ter estruturas similares e lidam com a dualidade do homem, algo que o protagonista carrega em seu figurino e explicita em palavras, trazendo um símbolo de paz no peito e a inscrição “Born to Kill” no capacete. Ambos terminam com acontecimentos trágicos e referências a Mickey Mouse.

Além disso, embora tenham suas diferenças, Joker e Cowboy são incomodamente semelhantes. Assim, cada ação de Cowboy se reflete como uma possibilidade para o outro personagem, ao mesmo tempo em que mantém o protagonista intocado. A trajetória de Joker é o que leva Full Metal Jacket para frente. O público sofre e cresce com ele.

Como um drama, a produção é muito bem construída. Ele pede por um envolvimento com o personagem principal, mesmo ele sendo uma pessoa sarcástica e perdida. Ao final da primeira parte, ele se destaca dos demais soldados e é criada uma empatia. É só dessa forma que a segunda metade da produção pode ser adequadamente sentida.

Como um filme sobre o Vietnã, Full Metal Jacket não é o melhor. Na época de seu lançamento, ele foi ofuscado por outras produções e criticado por poder acontecer em qualquer outra guerra – mas pesa o fato de ter acontecido na guerra que foi perdida. Aumenta a sensação de irrelevância daqueles soldados, daquelas vidas perdidas.

Tecnicamente perfeito, o filme foi totalmente filmado em Londres. R. Lee Ermey foi um dos consultores para recriar o centro de treinamento dos soldados em estúdio e Kubrick deu uma iluminação quase que sem graça para esse espaço. Todos são iguais antes da guerra. A parte mais interessante é, inesperadamente, a mais fria.

Já as cenas no Vietnã começam a mostrar outras tonalidades. As batalhas contam com iluminações marcantes e o drama aparece com mais profundidade. Só é uma pena que ninguém parece estar prestando atenção. O começo fisga o público, mas ele já teve seu arco narrativo concluído. Joker é interessante por si só, mas são poucos os que realmente ficam com ele até o fim, por mais que sua história mereça.

Full Metal Jacket é a sensibilidade calculada e observadora de alguém que não se contenta com o mundo como ele é. Mesmo que, a princípio, não chame muita atenção, é um título destinado a longevidade, algo que muitos de seus ‘concorrentes’ não podem dizer.


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