Divagações: Boys Don’t Cry

“Isso não é entretenimento. Esses filmes não são ‘viagens’ ou ‘diversões’. Eles são experiências de galvanização que jogam diretamente na...

“Isso não é entretenimento. Esses filmes não são ‘viagens’ ou ‘diversões’. Eles são experiências de galvanização que jogam diretamente na sua cara todas as coisas que Hollywood presume como as razões que fazem você, para escapar da realidade, ir ao cinema. São filmes que reorganizam sua cabeça, que desafiam suas ideias fundamentais sobre a vida e o amor e o sono final. Expansores de consciência, em outras palavras, mas raramente de uma maneira agradável. Devemos agradecer a Deus por eles”.

Esse é um trecho publicado pela revista Premiere em uma reportagem que listava os 25 filmes mais perigosos já feitos. E Boys Don’t Cry está nessa relação – apenas na 24ª posição, é verdade, mas está lá.

Mesmo que você não tenha qualquer conhecimento sobre a história, que é baseada em fatos reais, dá para perceber desde o começo que algo ruim vai acontecer. Ao mesmo tempo, isso não impede que a simpatia pelos personagens principais seja crescente, assim como a tristeza proporcionada pelo desenrolar da história. Esse é um drama do qual não dá para fugir facilmente.

Brandon Teena (Hilary Swank) é um menino que nasceu em corpo de mulher. Sem dinheiro para tratamentos hormonais e cirurgias, ele faz o que pode, mas frequentemente se envolve em enrascadas. As coisas parecem melhorar, no entanto, com a feliz acolhida que recebe em uma cidade vizinha, onde faz amizade com a jovem mãe solteira Candace (Alicia Goranson), com o briguento companheirão John Lotter (Peter Sarsgaard) e com a sensível e rabugenta Lana Tisdel (Chloë Sevigny), por quem se apaixona. Nesse lugar, ele decide recomeçar a vida e esconder completamente sua identidade anterior, mas, obviamente, o segredo não é mantido e as coisas começam a desandar.

O detalhe é que a diretora Kimberly Peirce, que escreveu o roteiro com Andy Bienen, decide contar essa história de mentiras, violências e angústias – muitas angústias – com carinho e um imenso respeito por seus personagens. Essas não são pessoas perfeitas, mas ninguém é totalmente ruim. Alguns são frutos diretos do meio, outros estão lutando com o que podem e o espectador é forçado a enxergar justamente quem tem mais dificuldades para se enquadrar (e, consequentemente, sofre mais).

Assim, Boys Don’t Cry também pode ser descrito como uma história sobre adolescentes um tanto quanto inconsequentes que só queriam se divertir, mas descobriram que o mundo não é bem assim. O romance de Brandon e Lana é sutil e carinhoso, não sendo abordado de forma sexualizada. Além disso, o grupo sai para beber, arruma briga em bares, dança, patina no gelo, ultrapassa o limite de velocidade em uma estrada...

Para que a produção funcionasse bem, no entanto, era preciso um elenco que desse conta do recado. Hilary Swank passou um mês se vestindo de homem antes de começarem as filmagens e trabalhou fortemente a questão de postura corporal e comportamental, mas apenas isso não seria o suficiente. Ela se entrega de corpo e alma ao papel e não é à toa que ganhou um Oscar por esse trabalho. Ao seu lado, Chloë Sevigny e o resto do elenco apenas tentam brilhar.

Por mais que o mundo tenha mudado nos últimos anos (a história se passa em 1993) e a causa dos transgêneros tenha ganhado notoriedade, ainda há muito preconceito e intolerância. Boys Don’t Cry é um soco na cara de quem precisa enxergar além da sua realidade. Não é um filme fácil de ver, mas eu realmente agradeço por ele existir.

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