Divagações: Hidden Figures

Hollywood tem o estranho costume de ‘segurar’ alguns filmes até o último segundo, de modo que eles ‘cheguem’ diretamente na temporada de pr...

Hollywood tem o estranho costume de ‘segurar’ alguns filmes até o último segundo, de modo que eles ‘cheguem’ diretamente na temporada de premiações – e como uma novidade bem recebida, de preferência. Em 2016, Hidden Figures foi um desses filmes, estreando no dia 25 de dezembro (a data-limite para quem quer competir no Oscar) e em número limitado de salas. Desde o princípio, seu elenco chamava a atenção, assim como a história baseada em fatos reais, mas o tom dos trailers não deixava claro se essa realmente era uma daquelas produções ‘feitas para o Oscar’. Sinceramente, talvez não fosse mesmo. Mas isso não diminui o fato de que o longa-metragem mereceu seu lugar na festa.

Hidden Figures conta um pouco da carreira de três mulheres que trabalhavam na Nasa na década de 1960, quando o programa espacial ainda rumava para seus primeiros voos. Na época, as mulheres ocupavam apenas a posição de computadores, sendo responsáveis por cálculos e pela checagem de dados (computadores-máquina, como conhecemos, ainda não eram uma realidade). A princípio, Katherine Goble Johnson (Taraji P. Henson), Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) e Mary Jackson (Janelle Monáe) era apenas três computadores do time de cálculo formado por mulheres negras. Mas elas se tornaram muito mais.

Katherine entrou para o time que enviaria um homem para o espaço. Ela rivalizou com engenheiros (Jim Parsons) e conquistou a confiança de seu superior (Kevin Costner) e do astronauta John Glenn (Glen Powell), ganhando o direito de poder ir além de verificar as contas alheias e de entregar seus próprios relatórios. Dorothy assumiu naturalmente posições de liderança – mesmo sem receber para isso, ao contrário de sua 'contraparte' branca (Kirsten Dunst) – e elaborou estratégias para manter sua equipe nos quadros da Nasa, mesmo com a chegada de novas tecnologias, que poderiam tornar essa força de trabalho supérflua. Por fim, Mary percebeu que precisava se tornar uma engenheira para ir além na carreira. E foi isso o que ela fez, tornando-se a primeira engenheira negra da Nasa.

Talvez eu tenha falado um pouco demais sobre o que acontece no filme, mas a verdade é que Hidden Figures é muito mais do que as conquistas individuais de cada uma dessas mulheres. O diretor e roteirista Theodore Melfi, que assina o texto ao lado de Allison Schroeder, contou uma história de esforços profissionais gigantescos sem esquecer de mostrar toda a injustiça de uma sociedade racista e machista. Ao mesmo tempo, suas protagonistas não são máquinas, elas têm família, amizades e uma vida pessoal que independe de seu trabalho.

Sem cair no dramalhão, o filme se segura ao usar a força e o bom humor das próprias protagonistas para não deixar seus espectadores caírem no choro. Ao mesmo tempo, isso não quer dizer que não haja sequências fortes e capazes de chocar. Os anos 1960 não foram fáceis para a comunidade negra nos Estados Unidos e mesmo pessoas em posições aparentemente privilegiadas – afinal, as personagens possuem curso superior e um bom emprego – não podem fazer coisas aparentemente simples, como escolher onde sentar em um ônibus, usar o banheiro ao final do corredor ou ir à biblioteca pública.

Mas, justamente por não se deixar abalar, Hidden Figures não é um ‘filme de Oscar’ tradicional. A história é repleta de camadas e dramas, mas parece muito mais simples do que realmente é. Isso acontece não só pela atitude das protagonistas, sendo também expresso visualmente. Alguns dos recursos adotados são bastante fáceis de entender, como as cores. A Nasa e os ambientes onde elas não são exatamente bem-vindas possuem tonalidades estéreis, como branco e cinza, enquanto ambientes mais amigáveis são expressos como acolhedores, com tons de marrom e cores quentes. O desafio fica óbvio, contudo, isso não o torna mais fácil.

Tocante, engraçado, triste, mas sempre firme, esse é um filme que é fiel a si mesmo e as suas origens. Hidden Figures é uma produção que poderia ter passado em branco na última temporada, mas houve quem acreditasse em seu potencial – e com razão. Ainda que o longa-metragem não tenha levado nenhuma estatueta dourada para a festa, ele marcou presença e espero que tenha aberto espaço para mais histórias como essa, de figuras que ficaram ocultas na História não porque fizeram menos, mas porque elas simplesmente não eram vistas pelos demais.

RELACIONADOS

0 recados