Divagações: Mud

A inocência é um conceito comumente retratado de uma maneira forçada por adultos – seres naturalmente sarcásticos, nostálgicos ou esquecid...

A inocência é um conceito comumente retratado de uma maneira forçada por adultos – seres naturalmente sarcásticos, nostálgicos ou esquecidos. Em Mud, a falta de maldade dos dois protagonistas é um elemento que constantemente os coloca a um passo de situações muito perigosas. E você, o adulto cheio de bobagens na cabeça, fica só esperando o momento em que tudo vai dar errado. Ao mesmo tempo, é essa inocência que os livra de muitos perigos.

A história de Mud se passa em uma comunidade ribeirinha do Arkansas, nos Estados Unidos. Por causa de uma lei que prevê a destruição gradual das casas à beira do rio, a comunidade sabe que está caminhando para seu fim e há uma tensão social crescente. Ainda assim, Ellis (Tye Sheridan) e Neckbone (Jacob Lofland) estão sendo criados da mesma forma como seus pais e avós. Eles têm liberdade para pegar um barco e sair pelo rio de vez em quando, mas também precisam ajudar no ganha-pão da família, seja a venda de peixe ou a coleta de conchas no fundo do rio.

Em uma das aventuras solitárias dos meninos – que, não por acaso, ecoam às histórias de Mark Twain –, eles encontram um barco em cima de uma árvore e decidem explorá-lo. Entretanto, descobrem que há um homem vivendo alí, Mud (Matthew McConaughey). Por mais que o instinto inicial de ambos seja sair correndo daquele sujeito com aparência e comportamentos perigosos, Ellis decide dar uma chance ao homem e os dois meninos acabam se envolvendo em uma história bem maior que eles.

Um dos pontos fortes do filme é que se trata de uma história relativamente clichê para um ‘filme de gente grande’, mas não é isso o que importa. A dimensão dos personagens vai sendo revelada aos poucos e essas descobertas são mais importantes que o próprio andamento da trama, pois levam a um desenvolvimento emocional e de percepção. É por isso que o olhar dos meninos é tão relevante. Eles estão criando seu espaço no mundo, mas ainda estão vivendo muitas descobertas.

A relação com a personagem de Reese Witherspoon é essencial nesse sentido. Tendo uma interação bastante limitada com ela, eles recebem informações contraditórias sobre quem aquela mulher misteriosa realmente é e precisam formar uma opinião com base na observação de ações que também não parecem fazer muito sentido se vistas isoladamente.

É preciso considerar, conduto, que essa é uma parte da trama bastante forçada se percebida isoladamente. Mesmo que ela seja essencial para a compreensão do personagem de McConaughey, há peças faltando e mentiras que não são totalmente esclarecidas. A desculpa que se trata de uma percepção infantil dos fatos mal e mal é convincente nesse caso.

Isso dito, fica claro que o diretor e roteirista Jeff Nichols tinha consciência de que seu filme só funcionaria de acordo se ele encontrasse um bom elenco, capaz de dar o peso necessário para cada papel. Obviamente, McConaughey e Witherspoon já são bastante confiáveis, de modo que o grande desafio estava mesmo na mão dos dois garotos escolhidos, especialmente Tye Sheridan, que representa o coração da produção. Com 16 anos na época do lançamento do filme, ele conseguiu entregar um personagem inocente e essencialmente bom que não parece calculado ou forçado, mas absolutamente natural. Se me falassem que ele foi descoberto em uma comunidade ribeirinha similar à retratada no filme, eu acreditaria (na verdade, ele é de uma pequena cidade do Texas).

Ainda que não seja uma obra-prima narrativa do cinema, Mud carrega em si uma delicadeza tocante. Sem ser um grande drama para levar os espectadores às lágrimas, o longa-metragem encanta com suas nuances e seus pequenos momentos, aproveitando-se de um lugar esquecido no tempo para contar um tipo de história que está se tornando mais e mais rara.

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