Divagações: Eyes Wide Shut

A cada novo filme, Stanley Kubrick surpreendia ao explorar novos gêneros, temas e narrativas. Em sua última obra, ele traz uma versão co...

A cada novo filme, Stanley Kubrick surpreendia ao explorar novos gêneros, temas e narrativas. Em sua última obra, ele traz uma versão completamente diferente de um dos filmes mais ‘típicos’ de Hollywood ao tratar sobre relacionamentos. Não é um romance nem um drama, mas um desencantamento.

Eyes Wide Shut é um resumo de tudo o que parece caracterizar Kubrick tecnicamente. É longo, teve filmagens exaustivas (a ponto de entrar no livro dos recordes como a mais longa gravação constante de um filme), usa da iluminação para expressar sentimentos – seja contradizendo ou acentuando o poder das atuações – e aposta em uma trilha sonora pesada. Ao mesmo tempo, foi o único filme a estrear no topo das bilheterias (a data foi cuidadosamente estudada por ele), um fenômeno puxado pelo casal principal e pelo falecimento do diretor. Além disso, o filme ainda levanta polêmicas sobre sua ‘qualidade’.

Com roteiro assinado por Stanley Kubrick e Frederic Raphael, o filme representa a realização de um projeto de longa data do diretor, que queria adaptar a história original de Arthur Schnitzler. Assim, as desilusões de um médico vienense do começo do século 20 são adaptadas para a Nova York dos anos 1990. William ‘Bill’ Harford (Tom Cruise) vive uma vida confortável com a esposa, Alice (Nicole Kidman), e a filha, Helena (Madison Eginton). Eles são jovens, bonitos e bem sucedidos.

Após uma festa na casa do milionário Victor Ziegler (Sydney Pollack), os dois conversam sobre ciúmes e Alice relata que já teve fantasias com outro homem, pensando até em abandonar o marido. Bill, que confiava absolutamente nela, fica muito abalado e parte em uma noite repleta de pequenos (e grandes) acontecimentos. O que acontece nesse dia e no seguinte acaba mudando seu ponto de vista sobre relacionamentos, mulheres e sexualidade – o que afeta profundamente seu casamento.

Obviamente, boa parte do apelo de Eyes Wide Shut com o público está na curiosidade com relação à cena da orgia com pessoas mascaradas. No entanto, é preciso observar que, ao mesmo tempo em que o retrato do relacionamento procura ser o mais fiel possível à dinâmica de um casal – tanto que o diretor escolher atores que efetivamente eram casados – todo o restante de Eyes Wide Shut é fantasioso e forçado. A Nova York filmada em um estúdio de Londres pode ser qualquer grande metrópole; as árvores de Natal dão um aspecto falso e colorido a quase todos os ambientes; e os próprios acontecimentos são exagerados, acumulados, ressaltando e exaltando as angústias dos personagens.

O interessante é que, nesse contexto, os coadjuvantes ganham espaço e fica difícil não se envolver com os dramas de cada um deles. Marion (Marie Richardson) acabou de perder o pai e vai se casar com um homem que vai levá-la para longe; Domino (Vinessa Shaw) está desesperada em sua busca por sobrevivência; Nick Nightingale (Todd Field) quer simultanemanete impressionar o amigo e se lamentar; Milich (Rade Serbedzija) e sua filha (Leelee Sobieski) precisam aprender a conviver; e Mandy (Julienne Davis) quer se livrar das drogas.

De certa forma, tudo o que acontece faz mais parte da viagem interna de Bill que da realidade – e isso não torna a trajetória menos relevante, pelo contrário. Quase todos os personagens reagem ao protagonista de forma sexual e ele se defende reafirmando repetidamente que é médico. Ele tenta fugir das próprias fantasias ao mesmo tempo em que mergulha nelas para evitar outras, aquelas em que sua mulher aparece com outro homem. As certezas do personagem foram tão abaladas que ele nada pode fazer a não ser se afundar.

Eyes Wide Shut não é uma história de redenção, mas sobre a queda, a desgraça. É Stanley Kubrick quebrando barreiras e padrões mentais para mostrar que estereótipos de protagonistas femininos e masculinos não devem ser a regra. É um exercício de narrativa, uma aula de cinema e uma maneira maravilhosa de encerrar uma carreira.

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