Divagações: Os Inquilinos
9.3.10Cuidado, não olhe para o lado!
Cinema é cultura de massa e para a massa. Concordam? Então me expliquem, por que “Os inquilinos” só estreou em uma sala de Curitiba, ainda por cima, localizada em um shopping de elite? A única explicação que pude pensar foi: preciosidades têm acesso restrito. Uma resposta ridícula em se tratando de cinema, que é uma mídia popular. Só fiquei sabendo desse filme graças à resenha de Eduardo Escorel, um dos poucos críticos de cinema em quem dá para se confiar, na revista piauí.
Apesar da minha birra com a distribuição e a divulgação, não vou perder tempo com os defeitos e partir para o que merece ser elogiado. A direção traz um toque pessoal à história que eu não via desde “O jardineiro fiel”. Não se assemelham no sentido de usar câmera na mão, mas em arrancar dos atores seu melhor fingimento a ponto de parecer sincero. É esse o termo! O filme é sincero.
O cabeça por trás de “Os inquilinos” é Sérgio Bianchi. Já ouviram falar? Eu tampouco. Agora imaginem a surpresa quando descobri que o cineasta é de Ponta Grossa (PR). É lindo ver safra local ganhar assim o mundo. Sua filmografia é curta, sete filmes, e pouco conhecida do grande público. Só que o sétimo filho... ah, esse vai dar o que falar.
“Os inquilinos” até parece nome de thrilller. O enredo do filme não permite classificá-lo assim, mas o modo como a história é contada é tão tenso que você sai da sala com os ombros e as costas doloridos. A qualquer momento qualquer coisa pode acontecer. Estupro, morte, tortura e o que mais a imaginação alimentada pelo medo permitir.
O protagonista, Válter, vive esse terror psicológico que é ser pobre honesto. Pressão de todo lado: do patrão, que o explora, da família, que o cobra, da sociedade, não que facilita sua vida, e dos bandidos que moram na casa vizinha. O jeito é tentar levar um dia por vez, fazer o que tem que fazer, fingir que não viu nada. Mas como dormir à noite? E quando os problemas alheios invadem os muros da sua casa? Não há paz, há sempre um ruído de alerta apitando na cabeça.
Se fosse para eu resumir o conflito da trama, diria que é a insegurança vivida por um pai de família após a chegada de vizinhos que são visivelmente bandidos – não trabalham, vivem bêbados, levam prostitutas para casa, chegam no meio na madrugada gritando que mataram um homem. No entanto, esse não é o único problema de Válter. Ele trabalha e estuda à noite, passa o dia todo fora. Gostaria de proteger a família, mas se sente impotente. Essas são dificuldades impossíveis de se resolver em duas horas de filme.
A cena inicial sintetiza bem o espírito do filme. A câmera parada mostra um punhado de casas da favela e uma grande árvore no meio (foto do início do post). Abre um pouco o enquadramento, há mais casas ainda. Diminui mais uma vez o zoom, a árvore está lá no meio, minúscula, e há infinitas casas. A favela engoliu a cidade, é um gigante que não pode mais ser controlado.
Válter é pobre, mas não favelado, mora em uma vila no pé da favela. Na volta do trabalho, dentro do transporte público, ele vê outros ônibus em chamas. Na escola, o Partido (PCC) interrompe as aulas com uma bomba. Ele vive acuado, sente ódio, mas sabe que vai ter que conviver com isso a vida toda. O conflito não surge e vai embora, ele existe desde sempre e só tende a aumentar, por isso, a estrutura do filme me pareceu diferente do usual.
Um ponto positivo que talvez seja a ruína de “Os inquilinos” na bilheteira: não há atores globais do estilo “protagonista de novela”. Cássia Kiss, Caio Blat, Zezeh Barbosa e Ana Lucia Torre, alguns dos nomes mais conhecidos, têm papéis secundários. Os principais são desempenhados por Marat Descartes, ator com poucas e pequenas incursões na TV, e Ana Carbatti, ambos perfeitamente caracterizados como um casal de classe baixa. Ele, de domingo, usa regata e lava o carro, conserta o portão e os canteiros. Ela o espera chegar à noite da escola, conta as novidades dos filhos, tira do forno o prato frio de arroz e bife e põe na mesa com um copo de Tang.
Acredito que, com “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”, houve uma espécie de exaltação da favela e da violência gratuita. Quem diria que isso um dia se tornaria pop! Esses filmes, sem dúvida, têm muitas qualidades, principalmente o primeiro, além do mérito de levar os brasileiros para ver cinema nacional. (Vai entender esse preconceito...) No entanto, parece-me que esses e outros do gênero criaram uma moda que põe o favelado sob os holofotes e ignora a classe C urbana, camada social grande em número, mas tão mal representada na mídia.
“Central do Brasil” mostra um pouco disso com a personagem de Fernanda Montenegro. Pena que isso foi no longínquo ano de 1998. Mais recentemente, houve também o ótimo, mas não excelente, “Linha de passe” (2008), que me veio à mente agora por também ter o ex-ator-mirim Vinícius de Oliveira.
Não espero que a classe C vire moda e, assim, se faça justiça social. Mesmo porque a relação entre essas premissas está incorreta; a primeira não implica a segunda. Só estou feliz de ver algo pertinente à nossa sociedade ser retratado de forma madura no cinema. Depois de besteiras hollywoodianas como “O lobisomem”, “Nine” e até “Preciosa” (filme raso), até que enfim algo com cérebro. E é do Brasil!
Texto: Suelen Trevizan
Fonte: dov’è Il latte?
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